A caretta do Mediterrâneo é uma espécie de tartaruga marinha com uma vida muito misteriosa para nós. É difícil seguir um réptil durante trinta anos que vive no mar e que só vem a terra para desovar (a fêmea, claro!). E a grande ameaça a esta espécie começa logo na desova, «programada» para as praias onde as mães nasceram e que hoje são locais turísticos apetecíveis. Já há organizações para defender as tartarugas e as suas «maternidades», mas muito se tem ainda de fazer para evitar que mais uma espécie desapareça da face do planeta. Sobretudo em termos de educação ambiental.
Estou a flutuar sobre uma tartaruga que voa pacholamente sobre as cândidas areias da baía de Laganas, na ilha grega de Zakynthos. Acompanho com umas braçadas as breves e espaçadas batidelas das barbatanas anteriores do animal. Estou a nadar, mas só a palavra voar serve para descrever o que sinto naquele momento. Mais adiante, um indivíduo enorme está pousado no fundo, vira a cabeça momentaneamente para me ver passar e continua embrenhado(a) nos seus pensamentos. Descobri mais tarde que, apesar de terem de respirar à superfície, estas tartarugas podem ficar até seis horas assim, no fundo, a dormitar. O silêncio e a sensação de paz são profundos. Não fosse o risco de a pele dos dedos macerar e estaria horas seguidas a perseguir as inúmeras tartarugas marinhas que nas águas da baía esvoaçam enquanto esperam o chamamento da praia.
O apelo da maternidade
É exactamente nestas inúmeras praias que rendilham as margens da baía onde eu flutuo que uma grande parte da população mediterrânica destas tartarugas nidifica todos os anos. São tartarugas-boba ou tartarugas-comum, que a ciência apelida de Caretta caretta, e a sua história de vida é crivada de factos surpreendentes e misteriosos. Eu estava em Zakynthos, no mar Jónico, para as conhecer melhor.
As fêmeas parecem sentir o apelo da maternidade apenas por volta dos 30 anos. Antes disso, provavelmente, estão mais preocupadas com a carreira. Quando o instinto maternal é mais forte, procuram um macho na imensidão dos mares, e uma vez cumpridos os protocolos legais dá-se o acasalamento na enorme privacidade dos oceanos. Poucas semanas depois, a fêmea, com o ventre cheio de ovos, procura uma maternidade. Nesta escolha está um dos primeiros factos interessantes – as fêmeas geralmente escolhem a mesma praia que as viu nascer, apesar de tantos anos passados. Os machos, por sua vez, nunca mais põem as barbatanas em terra desde o dia em que nascem.
Quando as fêmeas sentem que o tempo chegou, e levando só a bagagem essencial, dirigem-se à praia, sobem à areia seca e quente, abrem uma cova com cerca de cinquenta centímetros de profundidade, e aí depositam entre cem e cento e vinte ovos bem redondos e branquinhos. Cada fêmea pode repetir o processo mais três ou quatro vezes em cada estação reprodutiva. Em Zakynthos cerca de três mil tartarugas sobem à praia em cada ano e desta actividade resultam cerca de 1500 ninhos.
Com as mesmas barbatanas com que abriram o buraco voltam a tapá-lo, lançando turbilhões de areia até disfarçar bem o local (um ninho cheio de ovos de tartaruga é um pitéu muito apreciado por uma enorme lista de predadores). Voltam logo ao mar, delegando na areia aquecida pelo sol a responsabilidade de criar e educar os seus filhotes. Se tudo correr bem, as mães apenas voltarão a estas praias dois a quatro anos mais tarde para outra postura.
A temperatura das areias da praia exerce uma influência importante e que não tem sido fácil de explicar. Aparentemente, os ovos que ficam expostos a temperaturas mais altas (acima dos 29ºC) dão origem apenas a fêmeas, enquanto aqueles que não apanham tanto calor dão machos. É por isso que os manos do mesmo ninho são todos do mesmo sexo.
As pequenas crias, quando finalmente eclodem, tentam cavar até à superfície, mas só saem completamente de noite ou de madrugada. Pensa-se que as temperaturas altas das areias expostas ao sol lhes provoca uma espécie de letargia que as impede de emergir durante o dia. O objectivo parece claro – nos momentos frescos da escuridão a saída é mais segura porque os predadores serão menos abundantes e capazes. Apesar destes cuidados, os primeiros tempos de vida das tartaruguinhas são bastante acidentados, calculando-se que em cada mil nascimentos apenas um indivíduo chegue à idade adulta.
Vidas de mistério
Os pormenores da vida destes répteis, entre a saída das praias e o retorno para desovar trinta anos depois, são ainda um grande mistério. Sabe-se que se alimentam de animais que não sejam demasiado rápidos a fugir, como por exemplo alforrecas, ouriços-do-mar ou estrelas-do-mar, e pouco mais sabemos sobre os seus hábitos. Técnicas modernas de localização estão a dar novas pistas, mas manter um dispositivo preso num animal marinho durante trinta anos é praticamente impossível.
As tartarugas pertencem a uma família que anda (ou nada) por cá desde o tempo dos dinossauros, ou seja, há mais de 65 milhões de anos. As espécies marinhas transformaram as patas em barbatanas que servem de remos (as anteriores) ou leme (as posteriores) e apresentam uma carapaça óssea rígida (com excepção de uma espécie que apresenta uma consistência de couro). Como répteis que são, têm um coração com três cavidades e respiram por pulmões, o que as obriga a vir à superfície regularmente. No entanto, têm uma capacidade surpreendente de funcionar com elevados níveis de dióxido de carbono no sangue e podem manter-se horas a nadar nas profundidades. Nenhuma das espécies marinhas consegue esconder a cabeça e as patas no interior da carapaça como fazem os cágados e outras espécies. A Caretta caretta pode atingir os 1,20 metros de comprimento e pesar cerca de cem quilos, sendo o recorde de mais de 220 quilos. A sua distribuição geográfica inclui o Mediterrâneo, o Atlântico e o Pacífico (uma subespécie ligeiramente maior).
Ameaças à caretta do Mediterrâneo
As tartarugas do século XXI precisam de ajuda. Mas não para escolher as praias mais adequadas ou para subir e escavar nas suas areia, e nem sequer para fazer exercícios de respiração enquanto dão à luz a sua centena de ovos. É preciso ajudá-las a sobreviver num planeta humanizado onde as ameaças se acumulam e a probabilidade de chegar à idade em que o instinto as manda de volta à praia de nascimento é cada vez mais ínfima. Apesar de hoje em dia ser menos provável a captura e o abate propositado dos animais adultos ou a procura dos ovos para consumo (excepto talvez nalguns dos países do Norte de África), os riscos são talvez maiores. E várias espécies caminham para a extinção, incluindo as minhas companheiras de voo de Zakynthos.
Tudo começa com a elevada mortalidade das tartaruguinhas mal saem dos ninhos – às causas que podemos considerar naturais, como o frio e predadores como as raposas, genetas, gaivotas e aves de rapina em terra e uma série de peixes assim que entram nas águas, temos de adicionar provavelmente as que foram introduzidas na equação pelo homem, nomeadamente os cães, os gatos, as ratazanas… e os turistas. Depois, temos as ameaças no mar e que incluem artes de pesca pouco selectivas, ou seja, aquelas que arrastam e matam inúmeros seres marinhos independentemente de terem interesse comercial ou não; ou redes que prendem e afogam as tartarugas; ou os plásticos que ao serem ingeridos pelos répteis marinhos acabam por os asfixiar; ou a poluição; ou o tráfego marítimo intensivo que as atropelam e mutilam, etc.
E finalmente as ameaças nas praias, que são imprescindíveis para a reprodução. Infelizmente, muitos dos factores que fazem uma praia ser apetecível para a futura mãe tartaruga também são aqueles que atraem os turistas famintos de férias – águas tépidas, calmas e cristalinas; areia fina, quente e macia; sol copioso e temperaturas apetitosas. Ou seja, todos os adjectivos que servem para descrever um paraíso tropical!
Apenas um factor estava, em princípio, a favor das tartarugas: o momento escolhido para dar à luz. Enquanto os humanos parecem preferir as praias quando o sol partilha o seu calor e a sua luz, as parturientes preferem o fresco e o sossego da noite. Só que isto não é o suficiente para a salvação dos répteis. Primeiro esta repartição de horário mudou com os tempos, e os humanos começaram a ocupar as cálidas praias também à noite ou encheram as suas orlas com barulho e luz. Estas mudanças assustam as mães, que deixam de subir as praias, ou distraem a criançada que, quando emerge das areias, tem tendência a dirigir-se para as luzes (a evolução colocou-lhes no instinto a imagem das estrelas e da Lua reflectidas no mar). Em segundo, a ocupação humana em períodos solarengos é tão intensiva e activa que é pouco provável que os ovos, mesmo escondidos a meio metro de profundidade, encontrem coragem para prosseguir a sua missão até ao fim. A passagem frequente e contínua de humanos e veículos pode compactar as areias até asfixiar os jovens ou quebrar os ovos; a colocação de árvores ou guarda-sóis para fazer sombra afecta a temperatura da areia comprometendo a incubação; as tradicionais construções na areia ou os relevos causados pelas rodas de veículos podem transformar-se em obstáculos intransponíveis para as tartaruguinhas.
Voluntários pelas tartarugas
Em Zakynthos conheci uma das várias organizações que juraram defender as tartarugas marinhas que não querem desistir de vir às praias humanas para desovar. O nome da organização ambientalista é Archelon (Archelon ischyrose é o nome dado à maior tartaruga conhecida e que se extinguiu há cerca de setenta milhões de anos) e a sua missão é a de estudar, divulgar e proteger a vida das tartarugas de Zakynthos e das outras ilhas do Mediterrâneo. Apesar de ser uma associação grega, funciona essencialmente com jovens voluntários que respondem ao apelo e vêm de todos os lados do mundo. Todos são bem-vindos, e as únicas exigências para quem quer ser voluntário é ter boa vontade e interesse em salvar estes animais. Ah… e um completo desinteresse pelos luxos de um hotel, de uma pousada ou mesmo de uma cabana, porque uma tenda num qualquer olival é o mais próximo de uma casa que irão ver durante o período de trabalho. Os interessados encontram facilmente o site na internet.
Visitei o acampamento dos Archelon numa altura em que mais de sessenta voluntários aí se encontravam. Devo admitir que não é uma imagem bonita ver o local onde meia centena de jovens acampa durante vários meses de Verão. Se forem capazes de imaginar a confusão de um quarto de adolescente multiplicada por cinquenta poderão ter uma ideia aproximada do estado do acampamento em questão. Mas muito mais importante do que isso era a sensação de que todos estavam ali a servir o que consideravam uma grande causa – a defesa da biodiversidade da Terra.
Fui lá em Julho, quando as actividades do grupo estavam no máximo. No acampamento vi voluntários a almoçar, outros a partir, e outros ainda a dormir com a serenidade de quem tem a certeza de ter o dever cumprido.
Era a época da reprodução (das tartarugas, claro está!). Todas as noites, dezenas, ou mesmo centenas, de tartarugas subiam às praias para desovar e os voluntários tinham de estar em cada praia para garantir o sossego, para marcar as tartarugas e para recolher alguns dados científicos, pois só com perfeito conhecimento da biologia da espécie será possível estabelecer programas e regras que garantam a sua sobrevivência. Outros voluntários eram destacados para visitar os hotéis e restaurantes e fazerem uma apresentação pública das tartarugas marinhas, do seu modo de vida, e alertar para as ameaças que os pés de cada turista carregam naquela ilha. Como em tantas outras situações semelhantes, só com a educação e a sensibilização dos potenciais agressores será possível preservar o património natural
Apesar de se manter um nível bastante elevado de preocupação na conservação das espécies, é verdade que as acções de conservação das tartarugas marinhas parecem começar a ter mais sucesso nestes últimos anos. Embora um pouco forçado pela pressão política e pública, o governo grego investiu bastante na protecção da enorme baía a sul de Zakynthos, criando um parque marinho e colocando dois ou mais guardas a vigiar cada uma das seis praias (Marathonissi, East Laganas, Kalamaki, Sekania, Daphni e Gerakas). A baía de Laganas é o local de nidificação da Caretta caretta mais importante de todo o Mediterrâneo – a praia de Sekania, entretanto comprada pela organização internacional WWF e agora interdita ao público, pode conter centenas de ninhos em cada estação! Nas várias praias que visitei, pequenas armações de madeira alertavam para a presença de ninhos e aos veraneantes era pedido para não usarem as zonas mais longe da água que era onde se acumulavam mais ninhos. Em resultado dessa regra, a visão das praias era bastante interessante – as toalhas estendidas na areia faziam uma fila até cerca de dez metros da linha de água e acima disso, onde em princípio a areia quente seria mais convidativa, não estava ninguém excepto as tais sinalizações de ninhos. Este é o resultado evidente da sensibilização e do civismo, obviamente secundado por forte fiscalização e tolerância zero.
Terras de contraste
Mas Zakynthos não é só um paraíso grego das tartarugas marinhas, com águas translúcidas a reflectirem as montanhas. Para conhecer a Zakythos actual temos de ir mais para o interior, mais perto do coração. Aí chocamos com o contraste. Chocamos e penamos com a sorte da ilha das tartarugas. O primeiro sinal do que nos esperava aconteceu quando nos cruzamos, na estrada que sai da praia de Laganas, com um grupo apressado e barulhento de miúdos em moto quatro. Perto da praia, já tínhamos provado um pouco da civilização, passando por villas, hotéis e apart-hotéis lembrando o Algarve no seu pior dia de desordenamento. «É a vida!», pensámos, «é natural que haja muita gente a querer cobrar à natureza permissão para continuar na terra». Mas nada nos poderia ter preparado ou avisado para o que fomos encontrar a uns meros seis quilómetros da costa – várias avenidas largas ladeadas por megalojas com toalhas, recordações made in China, bronzeadores e loções para antes e depois do sol, óculos escuros e bóias; bares, restaurantes e discotecas com empregados à porta a assediar-nos com menus gregos; casas de striptease alternando com supermercados e pavilhões cheios de máquinas de jogos, uma réplica da mais iluminada e espalhafatosa Las Vegas. Apinhando as avenidas e saltitando entre portas, seguiam magotes de turistas do Norte da Europa, esforçando-se por destilar o álcool da noitada anterior através da pele escaldada e dorida. Fintando todas estas atarefadas formigas, mais e mais jovens em turbulentas moto quatro.
Fiquei desiludido e mesmo zangado. Custou-me a ideia de repartir aquela ilha, o sossego e o encantamento sentidos quando flutuava sobre as tartarugas, com aquela gente aparentemente pouco agradecida, pouco respeitosa. Fiquei irritado com «aquela» noção de férias, de divertimento e de alegria, pelo menos quando demonstrado ali e daquela maneira. Não sei se foi porque me destruíram a imagem que tinha da ilha, se foi porque tinha a certeza de que a natureza não estaria a gostar de participar neste tipo de negócio. Porquê? Não sei. Se não eram as minhas tartarugas, nem as minhas praias, nem as minhas montanhas, nem as minhas oliveiras milenares... porque é que me incomodava tanto? Será que estes locais e estas espécies só têm autorização para sobreviver se pagarem este tributo à civilização? E qual deverá ser o limite para o tributo? Tenho a certeza de que tem de haver algum limite e que em Zakynthos, na vizinhança da praia de Laganas, este está prestes a ser ultrapassado. Não admira que as tartarugas apenas a visitem de dois em dois anos… e num rompante, encobertas pela escuridão.
Esta preocupação com o turismo desmedido e desregrado numa ilha a milhares de quilómetros da própria casa não foi apenas um sentimento de um ambientalista egoísta que não quer partilhar as riquezas naturais. Esta é uma ameaça real sentida por entidades responsáveis e por aqueles gregos e europeus que apresentam um pouco mais de bom senso. Ao longo dos últimos anos, diversos artigos em importantes jornais da Europa têm confirmado que a onda de mais de duzentos mil turistas britânicos que inunda Zakynthos anualmente é responsável pela destruição de muito do património natural desta frágil ilha grega, e particularmente dos locais de nidificação das tartarugas marinhas. A Comissão Europeia processou o governo grego em 2005 por nada fazer para reverter ou, pelo menos, para desacelerar o descalabro. Nessa época, as festas nas praias ou discotecas próximas assustavam as tartarugas de tal modo que estas desovavam mesmo no mar! Houve quem sugerisse fechar a ilha a estrangeiros.
A pergunta que fica, e que tão bem se aplica a algumas das nossas zonas mais turísticas, é: pelo turismo tudo é permitido? A importância desse sector na economia local, regional e mesmo nacional justifica tudo? É óbvio que não e é preciso que desde cedo se esclareça isso para evitar conflitos.
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