10 setembro 2009

The Day BEFORE Tomorrow: My Translations II - The Death of Bunny Munro, by Nick Cave

Translator at leisure ;)
Here's my work on the first chapter, available in English by clicking any cover.


The Death of Bunny Munro
De Nick Cave
1
— Estou condenado — pensa Bunny Munro, num assomo de clarividência reservado somente para quem está para morrer. Sente que, algures pelo caminho, cometeu um erro grave, mas esta sensação passa num instante e desaparece – deixando-o num quarto do Hotel Grenville, de roupa interior, sozinho com os seus apetites. Fecha os olhos e pensa numa vagina qualquer, depois senta-se na beira da cama e, em câmara lenta, encosta-se ao espaldar estofado. Segura o auscultador do telefone com o queixo e, com os dentes, rasga o selo de uma garrafinha de brande. Esvazia a garrafa pela garganta abaixo, atira-a pelo quarto fora, depois estremece, engasga-se e diz para o bocal:
— Não te aflijas, amor, vai correr tudo bem.
— Tenho medo, Bunny — diz a sua mulher, Libby.
— Tens medo de quê? Não há razões para ter medo.
— De tudo, tenho medo de tudo — diz ela.
Porém, Bunny apercebe-se de que algo mudou na voz da mulher, desapareceram os violoncelos suaves, apareceu um violino agudo e crispado, tocado por um símio fugido ou coisa assim. Ele assimila a informação mas ainda tem de compreender o que significa ao certo.
— Não fales assim, sabes bem que isso não leva a lado nenhum — diz Bunny e, como um acto de amor, puxa profundamente num cigarro Lambert and Butler. É nesse momento que lhe ocorre – o babuíno no violino, a espiral descendente e inconsolável da conversa dela – e diz «Raios partam!» e sopra duas baforadas pelas narinas.
— Deixaste de tomar o Tegretol? Libby, diz-me que andas a tomar o Tegretol!
Há silêncio do outro lado da linha, e depois ouve-se um soluço entrecortado e longínquo.
— O teu pai voltou a ligar. Não sei o que lhe hei-de dizer. Não sei o que ele quer. Ele grita comigo. Está a delirar — diz ela.
— Pelo amor de Deus, Libby, sabes muito bem o que disse o médico. Se não tomares o Tegretol, ficas deprimida. E, como bem sabes, é perigoso para ti ficares deprimida. Quantas vezes temos de falar nisto, raios?
O soluço volta ao princípio uma vez, e depois outra, até passar a um choro suave e lastimoso, fazendo Bunny recordar-se da primeira noite deles – Libby nos seus braços, acometida por um ataque de choro inexplicável, num hotel de quinta categoria em Eastbourne. Lembra-se de ela olhar para ele e dizer, «Desculpa, às vezes fico muito emotiva», ou coisa assim, e Bunny leva a base da mão à braguilha e aperta, o que lhe provoca uma onda de prazer no baixo-ventre.
— Toma lá a porcaria do Tegretol — diz ele, mais calmo.
— Tenho medo, Bun. Há um homem que anda a atacar mulheres.
— Qual homem?
— Pinta a cara de encarnado e põe uns cornos de plástico como o diabo.
— O quê?
— Mais a norte. Está a dar na televisão.
Bunny pega no telecomando que estava em cima da mesa-de-cabeceira e, depois de uma série de estocadas e contra-ataques, consegue ligar a televisão que está em cima do minibar. Depois de tirar o som, percorre os canais até encontrar imagens a preto e branco de uma câmara de circuito fechado, tiradas num centro comercial em Newcastle. Um homem, de tronco nu com calças de fato de treino, corre pelo meio de gente aterrada. Tem a boca aberta num grito sem som. Parece que tem cornos de diabo e na mão um pau grande e preto.
Bunny pragueja baixinho e, nesse momento, toda e qualquer energia, sexual ou outra, o abandona. Aponta o telecomando à televisão e esta apaga-se num zumbido de estática e Bunny deixa cair a cabeça para trás. Concentra-se numa mancha de humidade no tecto em forma de um sino pequeno ou um seio feminino.
Algures nos confins da sua mente, apercebe-se de um chilrear incessante, um tinido de protesto enraivecido, com ar electrónico e horrível, mas Bunny não reconhece o que é, pois ouve a mulher perguntar:
— Bunny, estás aí?
— Libby. Onde estás.
— Na cama.
Bunny olha para o relógio, curva os dedos numa lupa mas não se consegue concentrar.
— Pelo amor de Deus. Onde está o Bunny Júnior?
— No quarto, parece-me.
— Olha, Libby, se o meu pai voltar a ligar...
— Ele anda com um tridente — diz a mulher.
— O quê?
— Um ancinho.
— O quê? Quem?
— O homem, mais a norte.
Bunny apercebe-se de que os pios agudos vêm lá de fora. Consegue ouvi-lo por cima da bomba do ar condicionado, e é apocalíptico o bastante para quase lhe aguçar a curiosidade. Mas não muito.
A marca de humidade no tecto está a alastrar, a mudar de forma – um seio maior, uma nádega, um joelho feminino sensual – e forma-se uma gota, alonga-se e treme, destaca-se do tecto, solta-se em queda livre e rebenta no peito de Bunny. Bunny dá uma palmadinha como se estivesse a sonhar e pergunta:
— Libby, amor, onde é que moramos?
— Brighton.
— E onde fica Brighton? — Pergunta ele, a passar um dedo pela fila de garrafinhas de álcool dispostas na mesa-de-cabeceira, e escolhe uma Smirnoff.
— No sul.
— O que é tão longe de «mais a norte» quanto se pode sem cair na porcaria do mar. Vá, querida, desliga a televisão, toma o Tegretol, toma dois comprimidos para dormir – merda, toma dois comprimidos para dormir – e eu estou de volta amanhã. Cedo.
— O molhe está a arder — diz Libby.
— O quê?
— O Molhe Ocidental, está a arder. Cheira-me a fumo daqui.
— O Molhe Ocidental?
Bunny esvazia a garrafinha de vodca pela goela abaixo, acende outro cigarro e levanta-se da cama. O quarto mexe-se quando Bunny se apercebe de estar muito bêbado. Com os braços estendidos dos lados e em bicos de pés, Bunny atravessa o quarto até à janela. Ameaça cair, tropeça e pendura-se nos cortinados de chita desbotada, qual Tarzan, até recuperar o equilíbrio e tomar tento. Abre os cortinados num gesto extravagante, e a luz do dia vulcanizada e o canto dos pássaros perturba o quarto. As meninas dos olhos de Bunny contraem-se dolorosamente e ele faz uma careta pela janela para a luz. Vê uma nuvem escura de estorninhos, a chilrearem que nem loucos por cima do pontão flamejante e fumarento do Molhe Ocidental, o qual se ergue, indefeso, no mar em frente ao hotel. Ele interroga-se porque é que não tinha reparado naquilo antes, e a seguir há quanto tempo está naquele quarto, e depois lembra-se da sua mulher e ouve-a perguntar:
— Bunny, estás aí?
— Estou — responde Bunny, hipnotizado pela visão do molhe a arder e dos milhares de pássaros a gritar.
— Os estorninhos ensandeceram. É uma coisa horrível. Os bebezinhos queimados nos ninhos. Não aguento, Bun — diz Libby, o violino alto a erguer-se.
Bunny volta para a cama e ouve a mulher a chorar do outro lado da linha. Dez anos, pensa ele, dez anos e aquelas lágrimas ainda o afectam – aqueles olhos azul-turquesa, aquela ratinha alegre, caraças, e aquela coisa insondável do soluçar –, recosta-se no espaldar da cama, leva a mão aos genitais como um símio e diz:
— Amanhã estou de volta, amor, cedo.
— Amas-me, Bun? — Pergunta Libby.
— Tu sabes que sim.
— Juras pela tua vida?
— Por Cristo e todos os santos. Até aos teus sapatinhos, fofa.
— Não podes vir para casa esta noite?
— Iria se pudesse — responde Bunny, a apalpar a cama em busca dos cigarros — mas estou a quilómetros de distância.
— Oh, Bunny... cabrão mentiroso...
A chamada cai e Bunny pergunta:
— Libby? Lib?
Olha inexplicavelmente para o telefone, como se só então percebesse que o tinha na mão, depois fecha-o como uma ostra, no momento em que lhe cai no peito outra gota de água. Bunny abre a boca em forma de «O» e mete-lhe dentro um cigarro. Incendeia-o com o Zippo e trava fundo, e depois solta uma voluta ponderada de fumo cinzento.
— Tens muito que fazer aí, querido.
Com grande esforço, Bunny vira a cabeça e olha para a prostituta que está à porta da casa de banho. As cuequinhas cor-de-rosa fluorescentes dela vibram contra a pele cor de chocolate. Ela coça as tranças, e vê-se uma nesga de carne cor-de-laranja por detrás do lábio inferior, frouxo do consumo de droga. Bunny pensa que os mamilos dela parecem as molas das minas que lançavam ao mar para rebentar navios de guerra, ou coisa assim, e quase lho diz, mas esquece-se, torna a travar no cigarro e explica:
— Era a minha mulher. Sofre de depressão.
— Não é a única, fofo — diz ela, e percorre a alcatifa Axminster desbotada, a ponta da língua chocante a sair-lhe, muito cor-de-rosa, por entre os lábios. Ajoelha-se e põe a verga de Bunny na boca.
— Não, é uma doença. Ela toma medicamentos e tudo.
— Ela e eu, querido — diz a rapariga do fundo da barriga de Bunny.
Bunny parece ponderar esta resposta enquanto mexe os quadris. Uma mão mole e preta descansa na sua barriga e, olhando para baixo, Bunny vê que cada unha tem pintada a representação pormenorizada de um pôr-do-sol tropical.
— Por vezes fica mesmo em baixo — diz ele.
— Por isso é que lhe chamam neura, fofo — diz ela, mas Bunny quase não ouve, pois a voz dela chega-lhe num ruído baixo e incompreensível. A mão mexe-se e depois salta-lhe na barriga.
— Hã? O quê? — Diz ele, a sorver ar entre dentes, ofegante, e sente outra vez aquela ideia, soprando-lhe do coração, de que as coisas vão acabar, «Estou condenado», dobra um braço por cima dos olhos e arqueia ligeiramente as costas.
— Estás bem, querido? — Pergunta a prostituta.
— Acho que há uma banheira a transbordar ali em cima — diz Bunny.
— Sossegadinho agora, amor.
A rapariga levanta a cabeça e olha fugazmente para Bunny, o qual tenta encontrar o centro dos olhos negros dela, a reveladora cabecinha de alfinete das suas pupilas, mas o seu próprio olhar perde a intenção e fica desfocado. Põe-lhe uma mão na cabeça e sente o brilho húmido da nuca dela.
— Sossegadinho agora, amor — diz ela outra vez.
— Chama-me Bunny — diz ele, e vê outra gota de água a tremer no tecto.
— Chamo-te o que raio tu quiseres, fofo.
Bunny fecha os olhos e faz pressão nos cabelos encordoados e ásperos dela. Depois sente a suave explosão de água no peito, como um soluçar.
— Não, chama-me Bunny — sussurra ele.

Sem comentários: