10 setembro 2009

The Day BEFORE Tomorrow - My Translations I - The Strain, by Guillermo del Toro and Chuck Hogan


Translator at leisure ;)
Here's my work on half of the first chapter, available in English by clicking the cover.






THE STRAIN
Guillermo del Toro e Chuck Hogan
A Lenda de Jusef Sardu
— Era uma vez — disse a avó de Abraham Setrakian — um gigante.
Os olhos do jovem Abraham brilharam, e a sopa de beterraba e couve que tinha na tigela de madeira pareceu-lhe logo mais apetitosa, ou pelo menos já não lhe sabia tanto a alho. Era um rapaz pálido, com peso a menos e enfermiço. A avó, decidida a engordá-lo, sentava-se em frente dele enquanto ele comia a sopa, e entretinha-o a contar histórias.
Uma bubbeh meiseh, uma «história da avó». Um conto de fadas. Uma lenda.
— Era filho de um nobre polaco. E chamava-se Jusef Sardu. O menino Sardu era mais alto do que qualquer outro homem. Mais alto do que os telhados da aldeia. Tinha de se curvar profundamente para entrar nas portas. Ora, esta altura toda era um fardo. Uma doença de nascença, e não uma bênção. O jovem sofria. Os músculos careciam da força necessária a sustentar os ossos compridos e pesados. Por vezes, tinha de fazer um grande esforço só para andar. Usava uma bengala, um pau alto – mais alto do que tu – com um cabo de prata esculpido em forma de cabeça de lobo, o qual era o brasão da família.
— Sim, Bubbeh? — Dizia Abraham entre uma colher e outra.
— Era a sina dele na vida, e ensinou-lhe a ser humilde, coisa muito rara nos nobres. Sentia tanta compaixão – pelos pobres, pelos trabalhadores, pelos enfermos. Era muito querido das crianças da aldeia, e as suas algibeiras grandes e fundas – do tamanho de sacas de nabos – estavam sempre cheias de bugigangas e doces. Ele próprio não tivera grande infância, pois chegara à altura do pai com a idade de oito anos, e aos nove já o ultrapassava por uma cabeça. O pai dele envergonhava-se secretamente da fragilidade e do tamanho dele. Porém, o Menino Sardu era mesmo um gigante benévolo, e muito amado entre o seu povo. Dizia-se que o Menino Sardu olhava do alto do seu nariz para todos, mas que não olhava do alto do seu nariz para ninguém.
A avó ia assentindo com a cabeça para que ele comesse mais uma colher. Ele mastigou uma beterraba cozida, a que chamavam «coração de bebé», por causa da cor, da forma, das fibras que pareciam capilares.
— Sim, Bubbeh?
— Ele também amava a natureza, e não tinha interesse na brutalidade da caçada – contudo, enquanto nobre e homem de posição, aos quinze anos o pai e os tios convenceram-no a acompanhá-los numa expedição de seis semanas à Roménia.
— Cá, Bubbeh? — Perguntou Abraham. — O gigante veio cá?
— Ao norte do país, kaddishel. Às florestas tenebrosas. Os homens da casa Sardu não vieram caçar javalis, nem ursos, nem alces. Vieram caçar lobos, o símbolo da família, o brasão da casa Sardu. Caçavam um animal que caça. As crenças da família Sardu preconizavam que comer carne de lobo dava aos seus homens força e coragem, e o pai do menino julgava que poderia assim curar os músculos débeis do filho.
— Sim, Bubbeh?
— O percurso deles foi longo e árduo, e assolado pelas intempéries, e Jusef fazia um esforço sobre-humano. Nunca antes saíra da aldeia da sua família, e sentia vergonha dos olhares que os estranhos lhe lançavam na estrada. Quando chegaram à floresta tenebrosa, os bosques pareciam vivos em redor dele. Bandos de animais rondavam à noite, quase como refugiados deslocados dos seus abrigos, covis, ninhos e tocas. Eram tantos animais que os caçadores não conseguiam dormir nas suas tendas. Alguns queriam ir-se embora, mas a obsessão do ancião Sardu sobrepunha-se à vontade de todos. Ouviam os lobos a uivarem de noite, e ele queria muito um para o seu filho, o seu único filho, cujo gigantismo era uma doença na estirpe dos Sardu. Ele queria limpar a casa Sardu daquela maldição, casar o filho, e ter muitos herdeiros sadios.
— E assim se passou que o pai dele, a perseguir um lobo, foi o primeiro a separar-se dos outros, mesmo antes do cair da noite do segundo dia. Os restantes esperaram por ele toda a noite, e espalharam-se para fazer uma busca depois de amanhecer. E assim se passou que um dos primos de Jusef não voltou nessa noite. E assim por diante, estás a compreender?
— Sim, Bubbeh?
— Até restar um só, Jusef, o menino gigante. Nesse dia seguinte, ele fez-se ao caminho e, numa região já batida, descobriu os corpos de seu pai, e de todos os primos e tios, deitados à entrada de uma gruta subterrânea. Tinham os crânios esmagados com violência, mas os corpos estavam por devorar – mortos por um animal de força prodigiosa, mas sem fome nem medo. Por que motivo não sabia ele – embora se sentisse a ser observado, talvez até estudado, por alguma criatura à espreita naquela gruta escura.
— O Menino Sardu arrastou cada um dos corpos para longe da gruta e enterrou-os fundo. Claro que este esforço muito o enfraqueceu, levou-lhe quase as forças todas. Estava esgotado, estava farmutshet. Todavia, mesmo sozinho e assustado e cansado, voltou à gruta naquela noite, para enfrentar o mal que lhe aparecesse depois do anoitecer, para vingar os seus antepassados ou morrer na tentativa. Sabemos isto pelo diário que ele tinha, e que foi descoberto nos bosques muitos anos depois. Esta foi a última coisa que escreveu.
Abraham estava de boca aberta e vazia.
— Mas que aconteceu, Bubbeh?
— Ninguém sabe ao certo. Em casa deles, quando as seis semanas chegaram a oito, e a dez, sem notícias, temia-se que o grupo de caçadores se tivesse perdido. Organizaram uma batida, mas nada encontraram. Depois, na décima primeira semana, chegou de noite uma carruagem com as janelas veladas à propriedade dos Sardu. Era o jovem senhor. Isolou-se dentro do castelo, numa ala de quartos vazios, e raramente, senão mesmo nunca mais, foi visto. Naquela altura, atrás dele só vieram boatos, acerca do que acontecera na floresta romena. Algumas pessoas que alegavam ter visto Sardu – se é que se pode acreditar nestes relatos – insistiam que ele fora curado das suas enfermidades. Até se dizia, à boca pequena, que ele regressara dotado de grande força, a qual combinava com o seu tamanho sobre-humano. No entanto, o luto de Sardu por seu pai, tios e primos era tão profundo, que nunca mais o viram durante as horas de trabalho, e a maior parte da criadagem foi despachada. Havia movimento no castelo à noite – via-se pelas janelas o lume das lareiras – mas, com o tempo, a propriedade dos Sardu foi-se degradando.
— Porém, diziam que, à noite, se ouvia o gigante a andar pela aldeia. As crianças, especialmente, espalharam a história de ouvirem o pic-pic-pic da sua bengala, de que Sardu já não precisava, mas com que as chamava para saírem das suas camas, atraídas pelas bugigangas e pelos doces. Aos descrentes apontavam-se os buracos no chão, alguns do lado de fora das janelas dos quartos, pequenas marcas típicas da bengala com cabo de lobo.
Os olhos da sua bubbeh escureceram-se. Ela olhou para a tigela dele, e viu que a maior parte da sopa já se fora.
— Em seguida, Abraham, começaram a desaparecer filhos de camponeses. Corriam as histórias de crianças a desaparecerem das aldeias vizinhas também. Até da minha aldeia. Sim, Abraham, em criança a tua bubbeh foi criada a meio dia de caminho do castelo Sardu. Recordo-me de duas irmãs. Encontraram os corpos delas numa clareira do bosque, brancas como a neve que as rodeava, os olhos abertos vítreos de geada. Eu própria, uma noite, ouvi não muito longe o pic-pic-pic – um ruído tão possante e ritmado – e tapei a cabeça com as mantas para não o ouvir, e passei muitos dias sem conseguir dormir.
Abraham tragou o fim da história com o resto da sopa.
— Grande parte da aldeia de Sardu caiu ao abandono e tornou-se um sítio maldito. Os Ciganos, quando a sua caravana passava pela nossa terra, falavam de acontecimentos estranhos, assombrações e aparições perto do castelo. De um gigante que rondava a terra alumiada pelo luar qual deus da noite. Foram eles que nos avisaram, «Comam e cresçam fortes – senão Sardu apanha-vos.» Por isso é que é importante, Abraham. Ess gezunterhait! Come e ganha força. Rapa a tigela. Senão – ele apanha-te. — Ela regressara daqueles poucos momentos de trevas, de rememoração. Os seus olhos voltaram à vivacidade de sempre.
— Sardu apanha-te. Pic-pic-pic.
E ele terminava a sopa, até ao último bocado de beterraba fibrosa. A tigela estava vazia e a história acabara, mas ele tinha a barriga e a cabeça cheias. Agradou à bubbeh que ele tivesse comido bem, e o rosto dela, para ele, era a expressão mais pura do amor. Naqueles momentos privados à raquítica mesa da família, comungavam, os dois, partilhavam comida do coração e da alma.
Uma década mais tarde, a família Setrakian era expulsa da oficina de carpintaria e da aldeia, embora Sardu não tivesse parte nisso. Estava aboletado em casa deles um oficial alemão, e o homem, amansado pela pura humanidade dos seus hospedeiros, tendo comido do seu pão naquela mesma mesa oscilante, uma noite avisou-os de que não cumprissem a ordem de, no dia seguinte, se concentrarem na estação de comboio, mas sim que deixassem a sua casa e aldeia nessa mesma noite.
Coisa que fizeram, a família inteira toda junta – os oito – partiram campo fora com tantos pertences quantos podiam levar. Bubbeh atrasava-os. Pior – sabia que os atrasava, sabia que a presença dela punha a família inteira em risco, e maldizia-se e às suas pernas velhas e cansadas. O resto da família acabou por se adiantar, todos menos Abraham – agora um jovem promissor e cheio de força, carpinteiro com tão tenra idade, estudioso do Talmude, com um interesse especial no Zohar, os segredos do misticismo judaico – o qual ficou para trás, com ela.
Quando ouviram notícias de que os outros haviam sido apanhados na localidade seguinte, e metidos num comboio com destino à Polónia, a bubbeh, roída pela culpa, insistiu que, para bem de Abraham, ele a deixasse entregar-se.
— Corre, Abraham. Corre para longe do Nazi. Como de Sardu. Foge.
Mas ele não se deixou convencer. Não queria separar-se dela.
Na manhã seguinte, deu com ela no chão do quarto em que tinham pernoitado – em casa de um lavrador compreensivo –, tinha tombado durante a noite, os lábios pretos como carvão e a descamar, o pescoço negro até à garganta, morta por ter ingerido veneno para animais. Com a graciosa autorização dos seus hospedeiros, Abraham Setrakian enterrou-a debaixo de uma bétula branca em flor. Com muita paciência, esculpiu-lhe um belíssimo marco de madeira, cheio de flores e pássaros e todas as coisas que a faziam feliz. E chorou e chorou por ela – e depois fugiu mesmo.
Fugiu a toda a brida dos Nazis, sempre a ouvir um pic-pic-pic nas suas costas...
E o mal seguiu-o de perto.

1 comentário:

Poison Ivy disse...

Ena, mulher corajosa (deu-te uma insónia, foi?)! ;) Qd tiver tempo, leio a preceito.