"É um caso notável e exemplar a vários níveis: a origem humilde e a formação académica reduzida e de natureza técnica; a tarimba de longos anos numa, digamos, segunda linha literária, como revisor tipográfico, tradutor e consultor editorial; o ter começado tarde, ou melhor, sido arrancando para a fama quase na velhice, é caso para admirar. E o saber assumir não só a fama mas também as canseiras que acarreta: viagens, entrevistas, colóquios, discursos, cerimónias, autógrafos, revela um sentido de dever que se deve realçar.
Os trabalhos forçados das traduções e revisões deram-lhe muita leitura, experiência e estofo que ele soube aproveitar. O tempo de maturação é sábio, mas quem o compreende hoje? Saramago entendeu-o e aprendeu por si muita coisa, e servindo-se do talento que andou muitos anos escondido, a ganhar força, projectou-se subitamente de uma forma esplendorosa. De repente, com toda a gente a olhar para outros lado, isto é, para outros autores, um nome até aí muito discreto surge na ribalta, feérico sob uma imensa onda de aplausos.
Já ouvi muitas explicações para o fenómeno: a máquina de propaganda que foi montada, a grande influência de Pilar del Rio (e por que não também de Isabel da Nóbrega?); a militância comunista e o apoio que representa, etc. Tudo boas razões, talvez determinantes. Seja como for, a obra aí está.
Antes de tudo ele impôs um estilo original, algo difícil a princípio, mas envolvente e logo depois atraente. Foi, e é sedutor ir atrás daquela toada, aceitar os diálogos no meio da narração (coisa agora já corrente) reconhecer as vírgulas como pontos finais, eliminar muita pontuação e coisas assim. Ousadias que não se recomendam a um aprendiz, é certo, mas que um mestre pode fazer. Se souber. E que na sua obra são coisas menores face à efabulação que vai tecendo, ao visual, à cor da sequência narrativa que pega, larga e retoma, e onde as palavras têm um papel senhorial porque nos prendem, seduzem e gloriosamente nos subjugam e encantam. E uma vez que a sintaxe é segura, como não reconhecer que estamos perante obra de grande valor?
Partindo quase sempre de uma ideia forte e original, Saramago, com um discurso envolvente e contínuo, vai ao encontro do leitor – do bom leitor, entenda-se – e do seu desejo de sentir o sabor das palavras, o seu peso específico. Mas na força maior da sua própria natureza que é a frase: longas e contínuas relações de ideias, problemas, enredos e ressonâncias, umas vezes poéticas, outras vezes irónicas, de vez em quando sarcásticas, que se vão desenvolvendo sem cessar e por onde a história e a moralidade inerente passam, sem pressas.
Desaconselhável para atrair públicos novos, dir-se-ia. Mas o interessante é que isto, que a muitos ainda desagrada, a muitos mais já agrada e muito, e parece que cada vez mais, mostrando que o sentido estético das pessoas para a literatura está bastante à superfície. E que alguma educação literária seria suficiente para pôr milhões a exigir, e a usufruir, a grande literatura. Como interpretar o seu rápido e consistente sucesso, o número extraordinário de traduções de todos os seus livros e a aceitação quase universal da sua obra? Para nós, portugueses, é muito bom que tenhamos o mais falado, lido e celebrado Nobel dos últimos tempos. E mais reconfortante é sentir que não é um Nobel dado por engano e que boa parte da sua obra se vai aguentar bem.
Agora note-se a vingança da história face ao triste episódio Sousa Lara. O Evangelho segundo Jesus Cristo pode incomodar aqui ou acolá, mas tem páginas magníficas de tal sensibilidade e beleza que tudo transfiguram, dando profundidade estética e afectiva à própria problemática que levanta. Muitos ficaram a odiar Saramago por este belo livro, mas anos depois leram, aos milhões, com entusiasmo e sem reclamar O Código Da Vinci, que, literariamente, nem de longe lhe chega aos calcanhares. Ironias do destino.
João Boavida, As Beiras, graças a De Rerum Natura
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