António Pescada
Tradutor
Nasceu em Albufeira em 1938
Tradutor de francês, inglês e russo
Viveu cinco anos em Moscovo, onde estudou língua e literatura russas.
Grande Prémio de Tradução do P.E.N. Club pela tradução de A Bela do Senhor, de Albert Cohen
Há 25 anos, regressado de Moscovo, António Pescada tinha o sonho de traduzir para português os clássicos da literatura russa. Encontrou um mercado editorial que valorizava pouco a tradução a partir do original. A situação alterou-se e ele é agora um dos nomes mais respeitados da tradução em Portugal. E a seguir a Tolstoi vem Tchékov.
Como se lançou na tradução de Anna Karénina?
Vivi cinco anos em Moscovo e quando voltei queria traduzir os clássicos russos. Um dia li um artigo da Mafalda Ivo Cruz em que ela se queixava da dificuldade de encontrar à venda certos clássicos, como a Anna Karénina. Eu, que já tinha vontade de traduzir essa obra, decidi começar.
Há quanto tempo foi?
Há uns três anos.
Foi o tempo que a tradução demorou?
Demorei mais ou menos dois anos a traduzir.
Lembra-se da primeira vez que leu o livro?
Tinha uns trinta e tal anos e li numa edição em espanhol. Não tinha muita confiança nas que existiam por aí. Por sinal aquela também era muito má. Já conhecia textos de Tolstoi, como a Guerra e Paz, e não me apercebi logo da grandeza de Anna Karénina. A tradução era fraca e empobrecia a linguagem. Só depois de aprender russo, de começar a ler o livro na língua original, é que me dei conta de que era um livro fora do vulgar. Conta a história de um amor, mas não é só isso. Conta uma situação, o estado de uma sociedade e, sobretudo, um sentimento: o ciúme.
O que tem de singular este Anna Karénina?
Desde logo as ideias do Tolstoi. Sobre economia, filosofia, educação, sobre a agricultura e a relação com o campesinato que estão reflectidas em Lévin, uma personagem que é uma espécie de alter ego de Tolstoi. Acho que este livro devia chamar-se Anna Karenina e Lévin: são duas personagens ao mesmo nível. Anna Karénina é um pouco o que são as mulheres, dependendo do grau de liberdade. Era uma mulher livre numa sociedade que não era livre. Saiu dos parâmetros que esta lhe impunha. Se queria ter um amante não era mal vista por isso, mas era imperdoável deixar o marido para ficar com o amante. O problema é intemporal, a solução é temporal.
Que problemas específicos é que este livro coloca a um tradutor?
Os problemas que Tolstoi coloca nas suas grandes obras. As pequenas obras são estilisticamente mais elaboradas, fluentes, mais fluidas. Houve um outro livro muito grande que traduzi que me deu muito trabalho, mas por razões diferentes: A Bela do Senhor, de Albert Cohen. Comparo A Bela do Senhor com um rio com alguns meandros e Tolstoi é um mar onde a gente se pode perder.
Perder, em que sentido?
Pode perder-se o fio da história e o estilo do autor. É preciso estar com muita atenção. Tolstoi é muito emaranhado nas grandes obras... Levanta problemas muito profundos ao nível da natureza humana, da psicologia, das relações. É um retrato da sociedade daquele tempo. É preciso não esquecer que alguns seguidores do Tolstoi, depois da sua morte, quiseram fazer dele uma espécie de fundador de uma seita que ficou conhecida por tolstoísmo e era uma mistura de religião com anarquismo. Toda essa complexidade está reflectida neste romance. Há que estar com atenção, escutar o espírito da época para seguir a voz do autor. Tolstoi é um escritor da literatura russa, mas é um autor mundial.
Vladimir Nabokov, no posfácio, refere-se a Tolstoi como "o maior escritor russo de ficção em prosa". Concorda com a apreciação?
Só não concordo com a classificação que dá a Dostoiévski [aparece depois de Tolstoi, Gogol, Tchékov e Turgueniev]. Merecia mais. Acho o Tolstoi mais sólido, apesar das diferenças estilísticas, a sua obra tem uma unidade maior. O Dostoiévski tem mais oscilações.
Que edições usou?
Além do original, usei três edições, incluindo uma portuguesa traduzida por José Saramago. Fui ver como ele tinha resolvido certos problemas e percebi que seguiu uma edição francesa. Tenho essa edição francesa, uma edição em castelhano e outra, muito boa, em inglês, da Penguin.
Qual o problema mais complicado de resolver?
Há uma parte em que Lévin está com os camponeses. Está a olhá-los e o que nos é dado é a descrição daquilo que ele vê. Se traduzirmos directamente fica uma coisa tão embrulhada que é impossível perceber. Dei não sei quantas voltas ao texto e só na revisão resolvi a tradução. Tive de "simplificar" o português para que se percebesse.
Nessa situação específica, deixa de olhar para o original e trabalha o português até fazer sentido?
É.
Aí, é o António Pescada que escreve e já não o Tolstoi.
(Risos).
Ainda nesse caso, o que fez foi tentar perceber como escreveria Tolstoi se escrevesse em português...
O princípio é esse. Não sei se consegui. (pausa) Fazer uma boa tradução é como marcar um golo...
Outro tradutor teria feito diferente...
Costumo dizer que traduzir é escrever a mesma história noutra língua. É mais do que isso ou então contaríamos da mesma maneira uma história de Thomas Mann ou de Tolstoi. Não pode ser. Tem de ficar o estilo do autor, a marca da língua original e da literatura a que o livro pertence, aquilo que os franceses chamam o génio da língua. Antes defendia quem numa tradução bem feita não se devia perceber de que língua era traduzida. Hoje não sou dessa opinião. Uma boa tradução tem de ter a marca da língua em que foi escrito, um sabor diferente. Neste caso, tem de se perceber que é russo.
Neste caso como se percebe?
Para já, pelo ambiente: humano, social e psicológico. Depois há maneiras de falar. Os nomes, que decido manter iguais ao original...
Que relação tem com esta tradução?
Não sei, às vezes tenho receio. Quando acabo fico sempre com a sensação de que alguma coisa me escapou.
Tradutor
Nasceu em Albufeira em 1938
Tradutor de francês, inglês e russo
Viveu cinco anos em Moscovo, onde estudou língua e literatura russas.
Grande Prémio de Tradução do P.E.N. Club pela tradução de A Bela do Senhor, de Albert Cohen
Há 25 anos, regressado de Moscovo, António Pescada tinha o sonho de traduzir para português os clássicos da literatura russa. Encontrou um mercado editorial que valorizava pouco a tradução a partir do original. A situação alterou-se e ele é agora um dos nomes mais respeitados da tradução em Portugal. E a seguir a Tolstoi vem Tchékov.
Como se lançou na tradução de Anna Karénina?
Vivi cinco anos em Moscovo e quando voltei queria traduzir os clássicos russos. Um dia li um artigo da Mafalda Ivo Cruz em que ela se queixava da dificuldade de encontrar à venda certos clássicos, como a Anna Karénina. Eu, que já tinha vontade de traduzir essa obra, decidi começar.
Há quanto tempo foi?
Há uns três anos.
Foi o tempo que a tradução demorou?
Demorei mais ou menos dois anos a traduzir.
Lembra-se da primeira vez que leu o livro?
Tinha uns trinta e tal anos e li numa edição em espanhol. Não tinha muita confiança nas que existiam por aí. Por sinal aquela também era muito má. Já conhecia textos de Tolstoi, como a Guerra e Paz, e não me apercebi logo da grandeza de Anna Karénina. A tradução era fraca e empobrecia a linguagem. Só depois de aprender russo, de começar a ler o livro na língua original, é que me dei conta de que era um livro fora do vulgar. Conta a história de um amor, mas não é só isso. Conta uma situação, o estado de uma sociedade e, sobretudo, um sentimento: o ciúme.
O que tem de singular este Anna Karénina?
Desde logo as ideias do Tolstoi. Sobre economia, filosofia, educação, sobre a agricultura e a relação com o campesinato que estão reflectidas em Lévin, uma personagem que é uma espécie de alter ego de Tolstoi. Acho que este livro devia chamar-se Anna Karenina e Lévin: são duas personagens ao mesmo nível. Anna Karénina é um pouco o que são as mulheres, dependendo do grau de liberdade. Era uma mulher livre numa sociedade que não era livre. Saiu dos parâmetros que esta lhe impunha. Se queria ter um amante não era mal vista por isso, mas era imperdoável deixar o marido para ficar com o amante. O problema é intemporal, a solução é temporal.
Que problemas específicos é que este livro coloca a um tradutor?
Os problemas que Tolstoi coloca nas suas grandes obras. As pequenas obras são estilisticamente mais elaboradas, fluentes, mais fluidas. Houve um outro livro muito grande que traduzi que me deu muito trabalho, mas por razões diferentes: A Bela do Senhor, de Albert Cohen. Comparo A Bela do Senhor com um rio com alguns meandros e Tolstoi é um mar onde a gente se pode perder.
Perder, em que sentido?
Pode perder-se o fio da história e o estilo do autor. É preciso estar com muita atenção. Tolstoi é muito emaranhado nas grandes obras... Levanta problemas muito profundos ao nível da natureza humana, da psicologia, das relações. É um retrato da sociedade daquele tempo. É preciso não esquecer que alguns seguidores do Tolstoi, depois da sua morte, quiseram fazer dele uma espécie de fundador de uma seita que ficou conhecida por tolstoísmo e era uma mistura de religião com anarquismo. Toda essa complexidade está reflectida neste romance. Há que estar com atenção, escutar o espírito da época para seguir a voz do autor. Tolstoi é um escritor da literatura russa, mas é um autor mundial.
Vladimir Nabokov, no posfácio, refere-se a Tolstoi como "o maior escritor russo de ficção em prosa". Concorda com a apreciação?
Só não concordo com a classificação que dá a Dostoiévski [aparece depois de Tolstoi, Gogol, Tchékov e Turgueniev]. Merecia mais. Acho o Tolstoi mais sólido, apesar das diferenças estilísticas, a sua obra tem uma unidade maior. O Dostoiévski tem mais oscilações.
Que edições usou?
Além do original, usei três edições, incluindo uma portuguesa traduzida por José Saramago. Fui ver como ele tinha resolvido certos problemas e percebi que seguiu uma edição francesa. Tenho essa edição francesa, uma edição em castelhano e outra, muito boa, em inglês, da Penguin.
Qual o problema mais complicado de resolver?
Há uma parte em que Lévin está com os camponeses. Está a olhá-los e o que nos é dado é a descrição daquilo que ele vê. Se traduzirmos directamente fica uma coisa tão embrulhada que é impossível perceber. Dei não sei quantas voltas ao texto e só na revisão resolvi a tradução. Tive de "simplificar" o português para que se percebesse.
Nessa situação específica, deixa de olhar para o original e trabalha o português até fazer sentido?
É.
Aí, é o António Pescada que escreve e já não o Tolstoi.
(Risos).
Ainda nesse caso, o que fez foi tentar perceber como escreveria Tolstoi se escrevesse em português...
O princípio é esse. Não sei se consegui. (pausa) Fazer uma boa tradução é como marcar um golo...
Outro tradutor teria feito diferente...
Costumo dizer que traduzir é escrever a mesma história noutra língua. É mais do que isso ou então contaríamos da mesma maneira uma história de Thomas Mann ou de Tolstoi. Não pode ser. Tem de ficar o estilo do autor, a marca da língua original e da literatura a que o livro pertence, aquilo que os franceses chamam o génio da língua. Antes defendia quem numa tradução bem feita não se devia perceber de que língua era traduzida. Hoje não sou dessa opinião. Uma boa tradução tem de ter a marca da língua em que foi escrito, um sabor diferente. Neste caso, tem de se perceber que é russo.
Neste caso como se percebe?
Para já, pelo ambiente: humano, social e psicológico. Depois há maneiras de falar. Os nomes, que decido manter iguais ao original...
Que relação tem com esta tradução?
Não sei, às vezes tenho receio. Quando acabo fico sempre com a sensação de que alguma coisa me escapou.
Por inspiração da Estante de Livros ;)
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