Erri de Luca, 59 anos, fez de tudo na vida: militante revolucionário a tempo pleno, operário, motorista em comboios de ajuda humanitária, exilado na Jugoslávia a ser bombardeado pela NATO. Agora, é escritor de uma seda pura, com uma palavra rigorosa, que nunca tem uma letra a mais. Por isso é devorado pelos leitores, tendo-se tornado escritor de culto. Entre as seis dezenas de títulos que já escreveu, havia quatro publicados em português: “Montedidio” e “Três Cavalos”, na Âmbar, “Tu, Meu” e “Em Nome da Mãe”, na Quetzal. As suas histórias regressam muitas vezes a Nápoles, cidade onde nasceu e viveu até aos 18 anos, num pós-guerra marcado pela pobreza e pela reconstrução – mas esse retorno não é feito de nostalgia, antes nos devolve futuros roubados, iludidos, esperançados.
Também a sombra do Vesúvio, junto à cidade, e Ischia, a ilha onde passava os Verões, são paisagens dessas fugas de Erri de Luca. Agora, a Bertrand publicou “O Dia Antes da Felicidade” e trouxe o escritor a Lisboa. Há mais de vinte anos, Luca decidiu começar a ler a Bíblia e aprender hebraico (também sabe russo e já traduziu Puskin). Tornou-se assim tradutor de livros bíblicos (e vão sete) e crítico de muitas das traduções que se fazem da Bíblia – e disso dá exemplos, nesta entrevista. No seu “Caroço de Azeitona”, agora também editado pela Assírio & Alvim, ficamos a conhecer histórias e interpretações acerca de personagens bíblicas. Caroços para trincar depressa.
Há quinze anos, era motorista da ajuda humanitária na Bósnia. Esse era também era o dia antes da felicidade, antes da libertação?
Há dez anos estive em Belgrado, sob os bombardeamentos da NATO. Fui desertor do meu país, que bombardeava a cidade. Considero o bombardeamento de uma cidade o acto terrorista por excelência, que quer destruir e aterrorizar o maior número de vidas. Assim estive em Belgrado, do lado do alvo.
Na Bósnia, foi depois de ter sido abatida a ponte de Mostar, magnífica construção em pedra branca que cavalga o Neretva. Trabalhei como pedreiro muitos anos. Os muros servem para dividir. A única construção que serve para unir, em vez de separar as pessoas, é a ponte. A destruição da ponte de Mostar impeliu-me a ir para a Bósnia. Fiz 40 viagens com os comboios de ajuda, mas eu era só motorista, os camiões não eram meus. Esse era o dia antes da felicidade? Não, era o dia da obediência, obedeci à ordem do dia do meu tempo. Era uma coisa que eu precisava de fazer.
É depois dessas experiências que pode escrever: “Esquecemo-nos do mal assim que chega um pouco de bem”?
Sim, a nossa natureza, especialmente a meridional, está pronta a esquecer todo o mal sofrido logo que sucede qualquer coisa de bom. No pós-guerra houve esta pressa de esquecer, de ultrapassar as cinzas, as ruínas.
Neste livro identifica a felicidade com a liberdade e o amor.
Há duas felicidades: uma, a felicidade política, popular, da maioria que se desfaz debaixo da opressão. Nós usamos a expressão tirar as bofetadas da face. Esse foi um momento de felicidade desejado, pago, conquistado. O amor é esta possibilidade de felicidade. Mas a felicidade e sempre um perigo, não é um passeio.
Mesmo no amor?
Mesmo no amor a felicidade contém zonas movediças.
As suas histórias têm pessoas concretas. Escreve: “Se lhes chamas gente, não fazes caso das pessoas.” Isto também tem relação com o amor e a necessidade de um rosto?
Claro que há necessidade de um rosto concreto. Também os escritores do chamado doce estilo novo [Petrarca e outros] tinham necessidade de dirigir-se a uma figura feminina concreta. O amor tem essa necessidade. Na frase que citava, há um momento em que, de repente, a multidão à volta e à qual não se liga, fica formada por pessoas singulares. Todos os que têm uma identidade dizem-nos respeito pessoalmente.
As suas personagens são também gente pobre, austera, mas nobre e íntegra. Pretende com isso exaltar a pobreza perante uma sociedade de aparências?
Eu conheci a cidade [Nápoles] do pós-guerra, a pobreza. A honestidade, a integridade eram necessárias. Eram uma técnica social para resistir e viver melhor, porque comportavam uma rede, um vínculo a todas as pessoas. Faziam comunidade, era como uma família alargada. E isto era possível com a honestidade, a integridade, a lealdade, a generosidade. São dotes que não são apanágio da pobreza, mas desenvolvem-se melhor na pobreza.
Vivemos num mundo em que estas técnicas sociais já não são necessárias, tornaram-se uma escolha moral. Naquela época eram uma escolha prática.
Nos seus livros regressa sempre ao Vesúvio, à ilha de Ischia, a Nápoles, de onde saiu aos 18 anos, à infância e à adolescência. São lugares e tempos importantes?
Sim, há momentos, na adolescência e na infância, em que a vida corre mais veloz, em que se condensam acontecimentos. Agrada-me regressar aquele ponto para contar e compreender.
Falamos de personagens que são também parcas em palavras. Estamos cheios de palavras?
Sim, de palavras que não têm consequência, que podem ser desmentidas no dia seguinte. A palavra política tornou-se uma palavra publicitária, não mantém aquilo que diz. Estamos num tempo de palavras ligeiras.
Isto é uma vantagem para um escritor: ele tem o monopólio das palavras mais pesadas, das palavras com consequência, uma vez pronunciadas. A palavra literária, e a poética ainda mais, tem um valor acrescentado num tempo charlatão.
Fala sempre de memórias da guerra e conta histórias dentro de histórias. O rapaz deste livro [“O Dia Antes da Felicidade”] diz que a história da cidade é a sua própria história. Temos necessidade da memória para encontrar a identidade?
Não, precisamos de uma geração que conte à geração seguinte a sua experiência. E que a conte de viva voz, não com o cinema ou a televisão, mas envolvendo-se com o corpo. Precisamos de uma geração que conte e transmita de viva voz e que o faça sem nenhum objectivo didáctico, porque assim passa o tempo, os seus serões, contando a sua vida e aventuras.
A II Guerra, do ponto de vista dos sobreviventes, foi uma imensa matéria narrativa. A memória que me chegou pertencia a esta árvore de transmissão do conhecimento de viva voz. Transmitir a memória não era um objectivo. Hoje, a memória tornou-se uma pílula na televisão para recordar um acontecimento. Isso não é memória, é aceder a um arquivo.
Não temos experiências que valham a pena contar às gerações seguintes?
Não vejo pais que contem histórias... Talvez não tenham nada para contar, excepto as férias que se fazem e as fotografias que tiraram num passeio de barco. Há um défice de transmissão, de tempo...
No “Caroço de Azeitona”, escreve: “Não traz fruto a Revolução quando é só política. Os fracos, os pobres, os ofendidos devem armar-se com outra coisa.” Isto é fruto de uma desilusão política?
Não, não. É fruto da minha experiência. Fui durante 11 anos militante revolucionário a tempo completo. Sem ter ambição de tomar o poder ou de fazer uma revolução política, mudámos o modo de pensar da nossa sociedade.
Fizemos uma revolução não política, uma revolução de mentalidade num país que vinha da guerra, com um governo de um mesmo partido durante 40 anos. O nosso país era atrasado, a única democracia provisória num Mediterrâneo cheio de fascismos: do vosso até à Turquia, passando por Espanha e Grécia.
Era um tempo em que não bastava uma revolução política, era necessária uma transformação das pessoas. E nós estávamos felizes com essa transformação.
Escreve que se pode vencer mais com os salmos de David do que com as armas. O que quer dizer?
Que aquela pessoa de quem estou falando, aquele Jesus na época da ocupação militar romana, baralhava as cartas, forçava os limites.
Havia revolucionários a esmo em Israel. Morriam como moscas nos patíbulos da cruz dos romanos. Ele queria introduzir uma variante, fundada também nos salmos de David, que dizia respeito aquele tempo e aquela pessoa. Não saímos ainda fora do âmbito dos salmos.
É verdade que começa o dia lendo versículos da Bíblia “para que o dia tenha um fio condutor”?
Acordo todos os dias estudando o hebraico antigo. Não sou crente. Tenho necessidade disso para despertar, como algo que acompanha o café, para forçar a caixa fechada do meu crânio.
Mas o hebraico da Bíblia ou de outros livros?
O hebraico antigo da Bíblia.
Porquê esse fascínio pelo texto bíblico?
Porque aquele é o formato original do qual descende toda a nossa civilização religiosa. Para mim aquele é um texto obrigatório. E aproveito de maneira escandalosa do facto de só eu o conhecer. E de poder desmascarar todas as traduções péssimas, ruins e mal intencionadas. Aproveito o talento que tenho, mas o texto deveria ser conhecido por todos.
É nesse sentido que fala da Bíblia como um caroço de azeitona?
Sim. As palavras que lia de manhã, quando trabalhava como operário, tinha-as como companhia para todo o resto do dia. Remastigava-as no trabalho das obras e fazia como se fosse um caroço de azeitona que me ficava na boca.
Quando fala de caroço de azeitona, quer dizer que a Bíblia é, como dizem os cristãos, um alimento?
Um aperitivo.
Já traduziu vários livros da Bíblia, escreveu “Em Nome da Mãe”, uma das mais belas narrativas ficcionadas do nascimento de Jesus. Há um livro ou uma personagem da Bíblia de que goste mais?
José. Nenhum dos evangelhos diz que era velho, podemos imaginá-lo jovem, belo e enamorado.
O seu nome vem do verbo hebraico yasaf, que quer dizer acrescentar. Yosef, à letra, é aquele que acrescenta. E o que acrescenta ele? Para já, a sua fé. Ele acredita na versão da sua noiva, grávida mas não dele. Acrescenta a sua fé à fé da rapariga que tinha acolhido aquela notícia.
Acrescenta-se ainda como esposo daquela rapariga, impedindo assim a condenação à morte, porque ela, perante a lei, era adúltera. E acrescenta-se enquanto segundo pai daquela estranha criatura aparecida no meio deles, Jesus, Yeshu em hebraico. Ele contribui e muito para esta história. No evangelho não é tido em conta mas nesses nove meses deu um contributo enorme.
Dê um exemplo das más traduções da Bíblia de que falou.
No original hebraico, não está a condenação de Eva de parir com dor. A palavra hebraica é esforço, fadiga. Não é dor, porque ali não há intenção punitiva da divindade. Há apenas uma verificação.
Àqueles dois, que comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal e que se encontraram nus, diz: “Vocês tornaram-se outra coisa, não pertencem já a nenhuma espécie animal; nenhuma espécie animal sabe que está nua; aconteceu uma mudança total.”
Está dizendo que a facilidade, a agilidade de parto ou a naturalidade com que os animais têm os filhos não acontecerá mais. E Adão diz logo: “Maldita a terra.” Porquê, se a terra não lhe fez nada? Porque há outra verificação: Adão não se contentará com o fruto espontâneo, mas esforçará a terra, irá afadigá-la também com o seu suor, irá desfrutá-la para tirar o maior lucro. A terra será maldita por causa do esgotamento dos recursos.
Não há, então, um castigo?
Vê-se que não há intenção punitiva, porque logo a seguir a divindade faz vestes de peles para cobrir aqueles dois nus. Este é o gesto mais afectuoso.
A palavra hebraica que aqui é traduzida como dor, aparece outras cinco vezes: quatro nos Provérbios e uma nos Salmos. Cinco vezes em seis é traduzida como esforço e fadiga. Ali, metem na boca da divindade uma condenação. E sobre isto baseou-se toda a subordinação feminina, a culpa de Eva.
Publicou há pouco em Itália um livro com o título “Penúltimas Notícias sobre Jesus”. Que notícias são essas?
São todas tomadas das histórias do Novo Testamento, do evangelho. São penúltimas porque as últimas, as respeitantes ao seu regresso, ao cumprimento da promessa, essas estão em suspenso. O cristianismo vive num intervalo entre o anúncio do fim, feito por Jesus, e o cumprimento deste anúncio. São dois mil anos de intervalo, de tempo suplementar.
E quem é esse Jesus?
É um Jesus em carne e osso, um Jesus ainda vivo, que está um tempo na oficina de carpinteiro do seu pai, até começar a sua missão. Vive num território ocupado militarmente por uma nação hostil, a maior potência militar. E pode dizer “dai a César o que é de César”, porque nada naquela moeda tem poder sobre o mundo. Por isso, é uma figura em carne e osso. Um hebreu daquele tempo.
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