Ninguém sabe como foi. Um dia, olhei e vi o que estava escrito. Então, fecharam os livros. Afastaram-me com medo que me fizesse mal à cabecinha. E eu ia pelas ruas e lia tudo o que via nas paredes, furiosa por me terem tirado a possibilidade de ler.
(...)
Fazia cada um a sua tradução para depois gastarmos o dinheiro a viajar
Fazia muitas traduções?
Imensas. Porque fazia questão de pagar as minhas viagens.
(...)Viveu muitos anos com José Saramago.
Conheci-o quando fui à editora Estúdios Cor, que me tinha convidado para fazer um conto de Natal. Vi lá aquele rapaz e ao folhear alguns livros que a editora me enviou, reparei que as badanas estavam muito bem escritas. Soube que era ele que as escrevia e disse: «Mas este homem devia escrever livros». A Capital a certa altura tinha um magazine e Mário Neves andava a procurar alguém para o dirigir. As traseiras do jornal davam para as da editora e eu disse-lhe que ali mesmo atrás de nós estava um rapaz que era bem capaz de fazer esse serviço, porque escrevia muito bem e ninguém dava por ele.
Não se enganou.
Como eu esperava, fez aquilo com uma grande limpeza. Não havia ainda nada entre nós. O José ia muitas vezes ao jornal e começou a haver um flirt. Um dia, eu disse-lhe que tinha que começar a escrever crónicas. Ele disse que não sabia mas saíram lindas como esperava. Depois, foi por ali fora. Mais tarde, fui eu que o levei a Mafra. Ele não queria ir e eu disse-lhe que ele ia ficar esmagado, espantado, porque era uma coisa para ele. E lá, disse-me que até gostava de pôr aquilo num livro. E foi o Memorial do Convento. Antes tinha escrito o Levantado do chão, que é lindíssimo.
Quando começou a escrever com um carácter mais sério?
O meu marido estava no consultório até tarde e ia ver doentes à noite, eu passava os serões sozinha. Deitava os meus filhos às nove e tinha essas horas pela frente. Foi então que comecei a escrever o primeiro romance, Os Anjos e os Homens. Gosto desse livro, que parte da ideia de dois anjos que vêm à Terra para ver como os homens se comportam. Wim Wenders copiou-me muitos anos depois…
N’ As asas do desejo…
… (risos)(...)
Quando agora entro numa livraria e olho à esquerda e à direita e só vejo aqueles livros que estão a sair, com aqueles títulos e capas, a que dantes chamávamos livres de gare, que se vendiam nas estações, pergunto-me o que estão a fazer os editores, o que trazem aos novos para comprarem e darem aos amigos? Porque há uma responsabilidade no que se edita. E a verdade é que os grandes escritores actuais talvez sejam menos conhecidos do que uns tantos que escrevem ligeirinho, ligeirinho. Ficamos entre o futebol e esses livros. Não percebo para onde vão.
Normalmente para os tops de vendas.
Mas as pessoas não os lêem, compram para dar. De resto, hoje em dia, as pessoas só telefonam. Ando muito nos transportes públicos e vejo que, mal se sentam no metro ou no autocarro, as raparigas sacam do telemóvel e perguntam: «Então». Nunca se voltam para dentro de si próprias, não querem pensar, interrogar-se. A comunicação tem que vir primeiro de nós para connosco, para depois podermos dar qualquer coisa, aprender, amar e viver com os outros.
Entrevista a Isabel da Nóbrega (n. 1925) no Jornal de Letras
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