No JL, de 3 de Novembro, Miguel Real, entre muitas outras coisas, escreve: “Em Caim permanece o estilo tradicional de Saramago (já amiúde analisado), tanto barroquizante (…) (uma floresta de palavras (sublinhado meu) ilustradora de uma ideia) e anarquizante (uma espécie de everything goes), isto é, a confluência de um léxico antigo e vernacular – avonde (pp.16 – com um vocabulário moderno, desenhando um melting pot semântico, aparentemente espontâneo, pelo qual a lógica do texto cria as suas próprias hierarquias gramaticais e ideológicas (…)".
O estilo enxuto, descarnado, nunca foi dom de Saramago. O escritor explica tudo até à exaustão, o que não raro se torna enfadonho. Dir-se-ia que há uma inundação de palavras, grande parte delas inúteis, como se tivesse ocorrido uma séria avaria na canalização provinda da nascente criadora. Por esta e outras razões, muita boa gente letrada costuma(va) afirmar, em surdina (o politicamente correcto vigora com força), que se a certos livros de Saramago fossem retiradas cem ou cento e cinquenta páginas, não perderiam nada: pelo contrário, ficariam mais claros, exactos, sucintos…
Quando assim acontece, alguma coisa está podre no reino da literatura. A arte de dizer muito em poucas palavras é difícil, dura, requer muito esforço, muita lima, muita monda… Escrever é cortar! Veja-se Miguel Torga, um dos mais elevados expoentes de concisão de escrita! Se lhe fosse retirada uma só palavra de uma frase ou de um verso, logo ficariam mancos…
Não posso acreditar numa arte literária em que palavra menos palavra vai tudo dar ao mesmo…
Quando assim acontece, alguma coisa está podre no reino da literatura. A arte de dizer muito em poucas palavras é difícil, dura, requer muito esforço, muita lima, muita monda… Escrever é cortar! Veja-se Miguel Torga, um dos mais elevados expoentes de concisão de escrita! Se lhe fosse retirada uma só palavra de uma frase ou de um verso, logo ficariam mancos…
Não posso acreditar numa arte literária em que palavra menos palavra vai tudo dar ao mesmo…
Os lugares-comuns sempre ocuparam uma posição de relevo na obra romanesca de Saramago. Só do romance Caim extraí uma caterva deles: máquinas de encher chouriços; do pé para a mão; dar tempo ao tempo; para aí virado; fazendo das tripas coração; carta branca; mal se podia ter nas pernas; dois coelhos de uma cajadada; a carne é supinamente fraca (genial, o acrescento do advérbio); chorar o leite derramado (expressão traduzida, à letra, do inglês: em português de lei seria: depois de o mal feito, chorar não é proveito; mas, veja-se a frase completa, para aquilatarmos da genialidade de quem a engendrou: “Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se o leite se derramou, derramado está e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de morte malvada é porque alguém lhe tirou a vida (…)” (Lili Caneças não diria melhor!) …
E por aqui me quedo, que agora me não apetece fustigar mais. Uma nota ainda: durante a leitura do livro, ouvi dezenas de vezes, a matraquear-me no pensamento, o diálogo do Ambrósio com a Senhora, tantos são os algos que o escritor utiliza ao longo do livro: “O que eu queria era algo, Ambrósio, algo de bom, entende, Ambrósio?!” “Entendo, sim, Mylady”…
E por aqui me quedo, que agora me não apetece fustigar mais. Uma nota ainda: durante a leitura do livro, ouvi dezenas de vezes, a matraquear-me no pensamento, o diálogo do Ambrósio com a Senhora, tantos são os algos que o escritor utiliza ao longo do livro: “O que eu queria era algo, Ambrósio, algo de bom, entende, Ambrósio?!” “Entendo, sim, Mylady”…
Analise-se alguma da tão autoproclamada ironia saramaguiana, associada a um humor do mais fino recorte. Examinemo-los, contextualizados, em alguns passos de Caim:
“Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente por ter falado como um livro aberto, ele que nunca havia feito estudos. (…)”, pp. 30;
“(…) Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma fogueira capaz de ser vista desde a lua (…) acabaria por pegar fogo ao jardim do éden, e eu ficaria sem emprego (…)”, pp. 31;
“O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe carta-branca (hífen da minha responsabilidade), mas nem mapa de estradas, nem passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes (…)”, pp. 78;
“Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas (…)”, pp. 80;
Acerca do jerico em que caim percorria o mundo através do espaço e do tempo: “Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de bandeiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão (…), pp.81 (uma das mais profundas definições de inefável jamais proferidas);
“O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha (palpos-de-aranha?) para chegar aqui (…)”, pp. 88… etc., etc.
“Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente por ter falado como um livro aberto, ele que nunca havia feito estudos. (…)”, pp. 30;
“(…) Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma fogueira capaz de ser vista desde a lua (…) acabaria por pegar fogo ao jardim do éden, e eu ficaria sem emprego (…)”, pp. 31;
“O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe carta-branca (hífen da minha responsabilidade), mas nem mapa de estradas, nem passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes (…)”, pp. 78;
“Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas (…)”, pp. 80;
Acerca do jerico em que caim percorria o mundo através do espaço e do tempo: “Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de bandeiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão (…), pp.81 (uma das mais profundas definições de inefável jamais proferidas);
“O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha (palpos-de-aranha?) para chegar aqui (…)”, pp. 88… etc., etc.
A conjugação verbal da segunda pessoa do plural é tão vulgar no Norte do País e em Trás-os-Montes, que toda a gente a sabe utilizar de olhos fechados. Ao invés, no romance Caim, as misturadas são frequentes. Do mesmo modo, o descaso votado à diferenciação de tempos verbais não é despicienda. Apenas um exemplo dos muitos que poderiam ser dados “[Eva] ia, como alguém dirá, decentezinha, embora não pudesse evitar que os seios, soltos, sem amparo, se movessem ao ritmo dos passos. Não podia impedi-los, nem em tal pensou (pensara, tinha ou havia pensado), pp. 26.No tocante à conjugação verbal da segunda pessoa do plural, analisemos apenas algumas em que o autor se ensarilha e ninguém dos seus acólitos lhe acudiu: “(…) Depois é convosco, aí já não posso nada, arranjem (arranjai) maneira de se juntarem (vos juntardes) à caravana, peçam (pedi) que os contratem (vos contratem) só pela comida, estou convencido de que quatro braços por um prato de lentilhas será bom negócio para todos, tanto para a parte contratada, quando isso acontecer não se esqueçam (vos esqueçais) de apagar a fogueira, assim saberei que já se foram (vos fostes) (…)”, pp. 31.
Poderia continuar o massacre, mas não vale a pena: a um Nobel todos os pecados lhe são perdoados. Os estudiosos que o dissecam, como as beatas o Missal Romano, lá se encarregam de lhe transformar os erros em virtudes e em novas regras… Querem continuar sentados ao redor da fogueira, soprando em sustenido as trombetas da louvaminhice, rindo às gargalhadas quando o patrono conta ou escreve uma frase humorística, sem piada nenhuma, na esperança de conseguir, pela devoção que lhe dedicam, a sua migalhinha de fama e prestígio, no universo globalizado da literatura! É tempo de proclamar: O rei vai mesmo nu… Nuinho em folha!
Outra das pechas que enxameiam o livro e a Língua Portuguesa: não tenho a menor dúvida, a menor ideia! Menor do que quê? Trata-se de um comparativo de inferioridade. Melhor seria escrever ou dizer não tenho a mais pequena dúvida ou a mínima ideia!
Sobre o tempo dos verbos, no discurso indirecto, há também pouca segurança ou mesmo ignorância: em pano nobelizado também chovem nódoas negras… Que dizer desta frase de Eva, no Éden, em resposta a Deus passeando pela brisa da tarde (título do livro do mesmo nome, de Mário de Carvalho, retirado do Génesis: “A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso (…)”, pp.19.
Haja Deus! Nem um simples discurso indirecto Eva consegue encarreirar… “Não disse que haja. Não disse que havia”, assim é que está certo, D. Eva Saramago del Rio! A mesma sábia que escreveu: “Se Deus existisse, já tinha vindo falar com Voltaire e Saramago”. Ó prosápia das prosápias, tudo é prosápia e vaidade!
Haja Deus! Nem um simples discurso indirecto Eva consegue encarreirar… “Não disse que haja. Não disse que havia”, assim é que está certo, D. Eva Saramago del Rio! A mesma sábia que escreveu: “Se Deus existisse, já tinha vindo falar com Voltaire e Saramago”. Ó prosápia das prosápias, tudo é prosápia e vaidade!
Tempo de fechar a tenda desta escrita. Vou já arrumar o livro na estante, junto dos irmãos colaços. Tenho a esperança de que no futuro um dos meus trinetos ou tetranetos o tire da prateleira para o ler e possa, depois, atestar, com a segurança que o tempo costuma reiterar, ou retirar, às grandiosidades fabricadas no presente, nessa altura já pretérito muito perfeito: “Foi este o primeiro Nobel da Literatura de Portugal? De certeza?"
Quanto a mim, não insisto: desisto. Não sei se perdi ou ganhei tempo. Quando o embaixador de Espanha, Porras & Porras, apresentou as credenciais ao Rei D. Carlos para encetar as suas funções diplomáticas no nosso País, El-Rei terá comentado com um dos ministros do reino: “Não é pelo nome, é pela insistência”… Eu também não insisto mais. Nem que me caiam pedaços de céu velho em cima da cabeça. Mais não ponho na carta, já vai mui longa.
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