22 novembro 2009

Much ado about nothing ou a Bíblia segundo Saramago


No JL, de 3 de Novembro, Miguel Real, entre muitas outras coisas, escreve: “Em Caim permanece o estilo tradicional de Saramago (já amiúde anali­sado), tanto barroquizante (…) (uma floresta de palavras (subli­nhado meu) ilustra­dora de uma ideia) e anarquizante (uma espécie de every­thing goes), isto é, a con­fluência de um léxico antigo e ver­nacular – avonde (pp.16 – com um voca­bulá­rio moderno, dese­nhando um melting pot semântico, aparente­mente espontâ­neo, pelo qual a lógica do texto cria as suas pró­prias hierarquias gra­maticais e ideológicas (…)".

O estilo enxuto, descarnado, nunca foi dom de Saramago. O escritor explica tudo até à exaustão, o que não raro se torna enfa­donho. Dir-se-ia que há uma inundação de palavras, grande parte delas inúteis, como se tivesse ocorrido uma séria avaria na canali­zação provinda da nas­cente criadora. Por esta e outras razões, muita boa gente letrada costuma(va) afir­mar, em surdina (o politica­mente correcto vigora com força), que se a certos livros de Saramago fos­sem retiradas cem ou cento e cin­quenta páginas, não perderiam nada: pelo contrário, fica­riam mais claros, exac­tos, sucin­tos…
Quando assim acontece, alguma coisa está podre no reino da literatura. A arte de dizer muito em poucas palavras é difícil, dura, requer muito esforço, muita lima, muita monda… Escrever é cortar! Veja-se Miguel Torga, um dos mais elevados expoentes de concisão de escrita! Se lhe fosse reti­rada uma só pala­vra de uma frase ou de um verso, logo fica­riam man­cos…
Não posso acreditar numa arte literária em que palavra menos palavra vai tudo dar ao mesmo
Os lugares-comuns sempre ocuparam uma posição de relevo na obra roma­nesca de Sara­mago. Só do romance Caim extraí uma caterva deles: máqui­nas de encher chou­riços; do pé para a mão; dar tempo ao tempo; para aí virado; fazendo das tripas coração; carta branca; mal se podia ter nas pernas; dois coelhos de uma cajadada; a carne é supi­na­mente fraca (genial, o acrescento do advérbio); chorar o leite derra­mado  (expressão traduzida, à letra, do inglês: em português de lei seria: depois de o mal feito, chorar não é proveito; mas, veja-se a frase completa, para aquila­tarmos da genialidade de quem a engendrou: “Cho­rar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivo­lidade de certos procedimentos humanos, por­quanto se o leite se der­ramou, der­ramado está e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de morte mal­vada é porque alguém lhe tirou a vida (…)” (Lili Caneças não diria melhor!) …
E por aqui me quedo, que agora me não apetece fustigar mais. Uma nota ainda: durante a leitura do livro, ouvi deze­nas de vezes, a matraquear-me no pensamento, o diálogo do Ambrósio com a Senhora, tantos são os algos que o escritor utiliza ao longo do livro: “O que eu queria era algo, Ambrósio, algo de bom, entende, Ambrósio?!” “Entendo, sim, Mylady”… 
Analise-se alguma da tão autoproclamada ironia saramaguiana, asso­ciada a um humor do mais fino recorte. Examinemo-los, contextualiza­dos, em alguns passos de Caim:
“Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente por ter falado como um livro aberto, ele que nunca havia feito estudos. (…)”, pp. 30;
“(…) Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma fogueira capaz de ser vista desde a lua (…) acabaria por pegar fogo ao jardim do éden, e eu ficaria sem emprego (…)”, pp. 31;
“O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe carta-branca (hífen da minha respon­sabilidade), mas nem mapa de estradas, nem passa­porte, nem recomendações de hotéis e restaurantes (…)”, pp. 78;
“Há que levar em consi­deração o facto de caim estar mal infor­mado sobre questões cartográficas (…)”, pp. 80;
Acerca do jerico em que caim percorria o mundo através do espaço e do tempo: “Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de ban­deiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortu­nado bicho que chega­ria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefá­vel, como sabe­mos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibili­dade de expressão (…), pp.81 (uma das mais pro­fundas definições de inefável jamais proferidas);
“O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudan­ças de rumo que me desorientavam, na ver­dade vi-me em papos-de-aranha (palpos-de-aranha?) para chegar aqui (…)”, pp. 88… etc., etc.
A conjugação verbal da segunda pessoa do plural é tão vulgar no Norte do País e em Trás-os-Montes, que toda a gente a sabe utilizar de olhos fechados. Ao invés, no romance Caim, as misturadas são frequentes. Do mesmo modo, o descaso votado à dife­renciação de tempos verbais não é despicienda. Apenas um exemplo dos muitos que poderiam ser dados “[Eva] ia, como alguém dirá, decentezinha, embora não pudesse evitar que os seios, sol­tos, sem amparo, se movessem ao ritmo dos passos. Não podia impedi-los, nem em tal pensou (pensara, tinha ou havia pensado), pp. 26.No tocante à conjugação verbal da segunda pessoa do plural, analisemos ape­nas algumas em que o autor se ensa­rilha e ninguém dos seus acólitos lhe acu­diu: “(…) Depois é convosco, aí já não posso nada, arranjem (arranjai) maneira de se juntarem (vos juntardes) à caravana, peçam (pedi) que os con­tratem (vos contratem) só pela comida, estou conven­cido de que quatro braços por um prato de lentilhas será bom negócio para todos, tanto para a parte con­tratada, quando isso acontecer não se esqueçam (vos esqueçais) de apagar a fogueira, assim saberei que já se foram (vos fostes) (…)”, pp. 31.
Poderia continuar o massacre, mas não vale a pena: a um Nobel todos os pecados lhe são per­doados. Os estudiosos que o dissecam, como as beatas o Missal Romano, lá se encarregam de lhe transformar os erros em virtudes e em novas regras… Que­rem continuar sentados ao redor da fogueira, soprando em sustenido as trom­betas da louvaminhice, rindo às gargalhadas quando o patrono conta ou escreve uma frase humorística, sem piada nenhuma, na espe­rança de conse­guir, pela devoção que lhe dedicam, a sua migalhinha de fama e prestígio, no universo globalizado da litera­tura! É tempo de proclamar: O rei vai mesmo nu… Nuinho em folha!
Outra das pechas que enxameiam o livro e a Língua Portuguesa: não tenho a menor dúvida, a menor ideia! Menor do que quê? Trata-se de um comparativo de inferioridade. Melhor seria escrever ou dizer não tenho a mais pequena dúvida ou a mínima ideia!
Sobre o tempo dos verbos, no discurso indirecto, há também pouca segurança ou mesmo ignorância: em pano nobelizado também chovem nódoas negras… Que dizer desta frase de Eva, no Éden, em resposta a Deus passeando pela brisa da tarde (título do livro do mesmo nome, de Mário de Carvalho, retirado do Génesis: “A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há ser­pentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso (…)”, pp.19.
Haja Deus! Nem um simples discurso indirecto Eva consegue encarrei­rar… “Não disse que haja. Não disse que havia, assim é que está certo, D. Eva Sara­mago del Rio! A mesma sábia que escreveu: “Se Deus existisse, já tinha vindo falar com Voltaire e Saramago”. Ó prosápia das prosá­pias, tudo é pro­sápia e vaidade!
Tempo de fechar a tenda desta escrita. Vou já arrumar o livro na estante, junto dos irmãos colaços. Tenho a esperança de que no futuro um dos meus trinetos ou tetranetos o tire da prateleira para o ler e possa, depois, atestar, com a segu­rança que o tempo costuma reiterar, ou retirar, às grandiosidades fabricadas no presente, nessa altura já pretérito muito perfeito: “Foi este o primeiro Nobel da Literatura de Portugal? De cer­teza?"
Quanto a mim, não insisto: desisto. Não sei se perdi ou ganhei tempo. Quando o embaixador de Espanha, Porras & Porras, apresentou as credenciais ao Rei D. Carlos para encetar as suas funções diplomáticas no nosso País, El-Rei terá comentado com um dos ministros do reino: “Não é pelo nome, é pela insistência”… Eu também não insisto mais. Nem que me caiam pedaços de céu velho em cima da cabeça. Mais não ponho na carta, já vai mui longa.

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