09 junho 2004

Da Tradução (2):

O velho estava sentado diante da escrivaninha.
Era de manhã.
(De novo.)
Traduzia.
Traduzia do alemão (entre diferentes línguas estrangeiras, era a que conhecia menos mal - costumava dizer o velho).
... antwortete nicht - leu o velho no livro (que traduzia).
... não respondeu - escreveu o velho na folha introduzida na máquina de escrever (na qual traduzia).
(...)
A tradução dá pouco dinheiro, mas é dinheiro certo (costumava dizer o velho).
Traduzindo, matava dois coelhos de uma cajadada: ganhava dinheiro (pouco dinheiro embora, mas seguro) e não tinha de escrever o livro.
(...)
Festgesogen - o velho coçou a cabeça.
...se não pudesse mexê-lo.
- Não é nada inventivo - o velho coçou a cabeça.
- E, depois, não é exacto - coçou mais.
- O seu olhar fixava-se no polegar, como se estivesse colado - balançou o velho. - Assim, era mais exacto.
- Mas a imagem é confusa - balançou, ainda.
- Embora mais expressiva - hesitou. - Mas um pouco forçada - concluiu.
- E, aliás, agora já está escrito.
- É preciso apagar e bater de novo.
- Não vale a pena.
Der Blutfleck...
O hematoma aumentava visivelmente. Tinha deixado o leito da unha e, em seu lugar, apareceu a curva estreita e fresca de uma lúnula pura na raiz da unha.
- Pode ficar - considerou o velho.
- É um pouco mais palavroso do que o original - considerou, ainda.
- Mas o alemão pode ser bastante condensado - prosseguiu nas suas considerações.
- Para mais, pagam à página - considerou, a fechar, o velho.

A Recusa, Imre Kertész, Presença 2003, tradução do húngaro de Ernesto Rodrigues

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