19 fevereiro 2004


" -- A mãe disse que o biberão ficou em cima do fogão -- informei eu.
- Dei-lho há pouco. Não é fome -- retorquiu Seymour.
Mesmo no escuro, dirigiu-se à estante e fez incidir o feixe de luz ao correr das prateleiras. Sentei-me na cama e inquiri:
- De que andas tu à procura?
- Pensei que talvez lendo-lhe qualquer coisa... - respondeu Seymour e tirou um livro da estante.
- Por amor de Deus, ela tem dez meses! -- exclamei.
- Bem sei -- tornou ele -- , mas tem ouvidos, pode ouvir.
A história que Seymour leu a Franny, nessa noite, à luz da lâmpada, era uma das suas preferidas, uma história taoista, e a minha irmã ainda hoje jura que se lembra de ele lha haver lido.

O príncipe Mu da China disse a Po Lo: «Já estás velho. Há alguém na tua família que te possa substituir em cuidar dos cavalos?» Po Lo respondeu: «Um bom cavalo conhece-se pelo porte e pelas maneiras. Mas um cavalo excepcional -- que não levanta pó nem deixa rasto -- tem qualquer coisa de efémero e rápido, evanescente como o ar. Em talento, os meus filhos estão num plano mais baixo; sabem o que é um bom cavalo, quando o vêem, mas são incapazes de reconhecer um cavalo excepcional. No entanto, tenho um amigo, chamado Chiu-fang Kao, vendedor ambulante de azeite e hortaliças, que, no que diz respeito a cavalos, não me fica de modo algum atrás. Chame-o, por favor.»
O príncipe Um assim fez, e depois mandou-o em busca de um bom garanhão. Três meses passados, voltou com a notícia de que encontrara um. «Está agora em Shach`iu» - informou ele. E o príncipe perguntou: «Que espécie de cavalo é?» «É uma égua baia, um pouco escura» - foi a sua resposta. Entretanto, mandaram buscar o animal e verificou-se que era um garanhão negro como a noite! Muito aborrecido, o príncipe chamou Po Lo. «Aquele teu amigo, que encarreguei de me procurar um cavalo, arranjou uma bela trapalhada. Num animal, não consegue sequer distinguir nem a cor, nem o sexo! Como é que ele percebe de cavalos?» Po Lo respirou com satisfação e perguntou: «Ele já chegou realmente a esse apuro? Se assim é, vale dez mil como eu todos juntos. Entre nós não pode haver comparação. Kao é um perito de mecanismo espiritual. Assegurando-se do essencial, esquece o pormenor. Atenta nas qualidades intrínsecas, despreza as aparências exteriores. Vê o que quer ver e não o que não quer. Olha para as coisas que deve olhar e põe de parte as que o não merecem. Kao deu mostras de ser um perito tão clarividente que devia julgar qualquer outra coisa melhor do que cavalos.»
Quando o cavalo chegou, verificou-se, na verdade, ser um animal magnífico."

SALINGER, J. D. (trad. Bertha Mendes e Salvato Telles Menezes), "Carpinteiros, Levantem Alto O Pau de Fileira", Lisboa, Quetzal Editores, 1991.

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