02 março 2006

O meu professor de cinema sobre Brokeback Mountain

Os inadaptados
A carreira de Ang Lee tem-se pautado por uma enorme versatilidade: entre a sátira de costumes de "Banquete de Casamento" (1993) e as proezas técnicas de "Hulk" (2003), tivemos um elegante filme de recorte literário, "Sensibilidade e Bom Senso" (1995), um magnífico retrato da América profunda em "A Tempestade de Gelo" (1997) e uma excelente revisita ao imaginário oriental no excelente "O Tigre e o Dragão" (2000). Independentemente da variedade de registos, parece indiscutível a sua capacidade para construir uma obra de vulto, a que vem agora acrescentar-se um belíssimo "western", com entusiástico acolhimento público e crítico, a perfilar-se para uma possível chuva de Óscares.
"O Segredo de Brokeback Mountain" (com o costumeiro título explicativo português), "western" moderno, centrado numa história de amor entre dois homens, dois "cowboys" que mantêm, durante anos, uma relação episódica, desafiando todos os limites e convenções, levanta muitas e curiosas questões sobre a própria inscrição num género tão codificado. Muitas têm sido as vozes que remetem para uma filiação revisionista num "western" clássico, como "Rio Vermelho"/ "Red River" de Howard Hawks, o mestre da análise da comunidade masculina, enquanto microcosmos. Claro que existem possíveis rimas internas entre os dois filmes, desde os movimentos de câmara sobre os rebanhos, até a cifradas remissões para as conotações homossexuais, tanto das relações entre John Wayne e Clift, como do duelo de pistolas entre este e John Ireland.
No entanto, a visão de Ang Lee passa por outros parâmetros, produz um outro olhar sobre a paisagem e sobre o mundo à volta, revê as regras de comportamento à luz de outros modelos. Se quisermos encontrar filiação cinematográfica directa teremos que nos reportar a um filme como "Os Inadaptados" (1961) de John Huston, de certo modo o iniciador de uma modernidade, que coloca o ocaso da heroicidade épica enquanto ponto de partida para a destruição dos mitos: o "rodeo" aparece figurado, em ambos os filmes, como recurso último e degenerescência de uma espécie em vias de extinção; o desenraizamento surge igualmente como resultado de um crepúsculo inevitável de um mundo sem sentido, nem horizontes.
E, por detrás de "Os Inadaptados", existe um outro ensaio para este anti-heroísmo magoado e inconsequente, "The Lusty Man" (1952), de Nicholas Ray, também integrável num sub-género de "filme-de-rodeo", apresentando um "rebelde sem causa", perdido nas teias da sua própria masculinidade, ferida de morte.
Em "O Segredo de Brokeback Mountain" este isolamento desgarrado das personagens, jogadas contra a grandeza da paisagem, contra o imponderável do sentimento, sem quaisquer justificações psicologistas, poderia, inclusive, explicar o relativo silêncio que a comunidade "gay" tem lançado sobre o filme. Dirão as vozes do "mainstream" que não se trata de um filme "gay", mas de uma simples história de amor entre dois homens, não abdicando nenhum deles das suas prerrogativas masculinas e das suas opções familiares. Nada é tão simples assim: parte-se, pois, do princípio que a estética "queer" apenas se aplicará a gritinhos efeminados ou a narrativas de travestis, envoltos em plumas de avestruz? "O Segredo de Brokeback Mountain" vai para além dessas querelas, não porque oculte as questões essenciais, criticando o "status quo" que impede que dois homens encontrem a felicidade juntos (Jack Twist, interpretado na perfeição por Jake Gylllenhaal, representa no "par" este desejo de desafiar as convenções e consumar a união), mas porque afronta os pequenos dramas quotidianos, que vão fluindo ao lado da narrativa principal, com olímpica serenidade. Recusa-se todo o carácter panfletário de uma narrativa que segue uma "normalidade" de reacção, não obstante as pequenas explosões que provoca, a partir de um Wyoming ligado à homofobia, expressa em recente "fait-divers", subliminarmente subjacente a todo o filme e às poucas e fugidias imagens (reais ou fantasmadas?) do assassínio "sacrificial" de Jake, "disfarçado" por uma narrativa apaziguadora de morte acidental.
Aliás, pelo olhar e pela mente, condicionada por um passado de aterradora ameaça homofóbica de Ennis Del Mar (fabuloso Heath Ledger), passa o ponto de vista determinante, o que liga a ficção a outra das suas possíveis âncoras fílmicas, também elas construídas pelo escritor-argumentista, Larry McMurtry, o díptico de Peter Bogdanovich, "A Última Sessão" (em que se projectava "Rio Vermelho") e "Texasville", ensaios sobre o fim de um tempo, numa cidade perdida nos confins de uma América amargurada e divorciada das suas raízes. A sonâmbula exposição do "herói" aos seus limites geográficos e mentais confere à cidadezinha o seu carácter de prisão sem grades, oposta aos grandes espaços de liberdade das deambulações do par.
Belíssima é extrema contenção com que se filmam as esparsas cenas de sexo ou o breve episódio mexicano, extraordinária a secura dos diálogos, a serenidade da construção das cenas familiares, num tempo sem tempo, que se estende por décadas e se comprime num espaço representativo bem delimitado. Na comovente visita à casa do "amigo", depois da sua morte, Ennis deixa explodir em surdina a raiva e a frustração acumuladas. Tudo nos é dado em sombria melancolia: o amor renasce da impossibilidade e do desencontro de duas almas gémeas (passe o tom aparentemente melodramático), impreparadas para assumirem plenamente o seu amor.
Fica o olhar profundo sobre o espaço infinito e a visão trágica sobre uma história de homens, uma deslumbrante história de solidão e de renúncia.


CineCartaz

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