15 outubro 2004

EL BULLI
Os mais cépticos dirão que é culpa dos tempos mediáticos que vivemos, outros que é a prova de que o star system chegou à cozinha. Mas a verdade é que um restaurante discreto e confortável, numa pequena cala catalã, onde se chega por uma estreita estrada, a muitos quilómetros dos grandes centros urbanos, é hoje um local de peregrinação para gastrónomos dos quatro cantos do mundo. E para se conseguir um dos seus 50 lugares é preciso reservar com um ano de antecedência.

Por muito que saibamos da importância das equipas e de outros factores da restauração, a verdade é que por trás do êxito globalizado do El Bulli está fundamentalmente um cozinheiro catalão, Ferran Adrià, de 42 anos, cujo nome é hoje reconhecido por todo o mundo civilizado como sinónimo de vanguardismo culinário.

Por tudo isto, uma ida ao El Bulli deve ser contada na primeira pessoa, e é isso que hoje, excepcionalmente, farei. Tinha lá estado há cinco anos, numa experiência extraordinária que até hoje recordo em detalhe e de que então dei conta nesta página. A expectativa criada, ainda por cima alimentada pelo crescimento da bullimania e de inúmeras notícias que iam dando conta do percurso de Adrià, era portanto enorme, tal como o receio de uma decepção ou de uma repetição de fórmulas.

Pois bem, foi extraordinário de novo. E completamente diferente. Se há cinco anos predominavam espumas e gelatinas, desta vez foram os «ares», as «esferificações» e a gelificações à base de nitrogénio e ozono que mostraram o radicalismo da criatividade de Adrià. Em comum, permanece a quase euforia que as refeições provocaram, o conceito de divertimento e surpresa que é uma das marcas registadas da cozinha do El Bulli.

Mal nos sentamos e vem o aviso de que não nos vão revelar quais os 32 pratos (vale mais dizer «experiências culinárias») que iremos provar, para não estragar a surpresa de os vermos chegar, nas formas mais inauditas. Apenas querem saber se há algum alimento a que sejamos alérgicos ou que realmente nos repugne.

A partir daí, estamos entregues nas mãos de uma equipa de sala jovem, alegre, competentíssima, que sabe detalhadamente tudo sobre as complicadas preparações que vai servir. Antes, já tínhamos sido conduzidos a uma cozinha laboratorial, onde não há fumos nem panelas, apresentados a Adrià, visto a concentração silenciosa com que os seus auxiliares montam cada prato.

Na mesa, começam a servir os aperitivos, como a caiprinha-nitro e uma piña colada com o rum esferificado (passado numa solução de brometo de sódio e transformado numas bolinhas que explodem na boca), acompanhando snacks como laços finíssimos de beterraba com pó de vinagre ou empadas transparentes de eucalipto e groselha ou ainda outros com diversos ingredientes orientais (Adrià tem tido muita atenção, nos últimos anos, à cozinha asiática, incluindo a japonesa).

Esta fase terminará com uma flor (crua) sobre uma bolacha finíssima. Chamam-lhe leche eléctrica «sechuan button» e pedem que, por muito que nos apeteça, não bebamos nada. É de facto estranhíssimo. Primeiro, ficamos com a boca salgada, depois doce, e depois com uma espécie de dormência agradável que só vai passar quando servem a seguir um shot de avelãs geladas com ozono. Virá depois uma enorme pipoca, que, para nossa estupefacção, pedem para comermos de uma vez. Aquilo que parece impossível acontece: a gigantesca pipoca, que sabe mesmo a pipoca, desfaz-se na boca sem dificuldade, como se comêssemos realmente uma «nuvem».

Uma folha de lima Kefir são apenas para chupar a deliciosa geleia que as envolve; um «caviar» de melão e maracujá (mais uma vez esferificado) é servido, com sentido de humor, numa latinha de caviar iraniano.

Mais tarde, entre outras experiências, vai-se destacar um «pão de queijo», servido numa embalagem típica de refeições de avião, cheia de ar de queijo, com muesli, ostentando o trocadilho Air Bulli. Ou uma sanduíche de típico chorizo espanhol, que vem em gelatina, com o «pão» representado por duas lâminas muito finas, mas onde se encontram todos os sabores dos ingredientes, num estilo que me fez lembrar o Bulli que conheci há cinco anos.

Não há espaço para mais descrições, mas fica uma nota para os vinhos, difíceis de conjugar com tal desfile de sabores. O me-lhor é pedir aos escanções. Não é preciso ter medo, porque eles encontrarão óptimas opções em torno de 25 euros (corem de vergonha, restaurantes portugueses!). No final, um casal paga cerca de 350 euros (há cinco anos, foram 250), e verá que «comprou» barato uma experiência para toda a vida.

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