12 abril 2004
Saki,
"Esmé"
Tradução de José Lima
- Todas as histórias de caça são iguais
- disse Clovis. - E todas as histórias de corridas
de cavalos também são iguais, e todas as
- A minha história de caça não se parece
em nada com qualquer outra que tenha ouvido - disse a Baronesa.
- Passou-se já há bastante tempo, tinha eu vinte
e três anos. Nessa altura não estava separada
do meu marido; está a ver, nenhum de nós se
podia dar ao luxo de pagar ao outro uma pensão. Digam
o que disserem os provérbios, são mais os lares
que a pobreza mantém unidos do que aqueles que destrói.
Mas caçávamos sempre com matilhas diferentes.
Nada disto tem a ver com a história.
- Ainda não chegámos ao ponto da concentração.
Suponho que houve uma concentração dos caçadores
- disse Clovis.
- Claro que houve uma concentração - disse a
Baronesa. - Estava lá toda a gente do costume, e em
particular Constance Broddle. Constance é uma daquelas
raparigaças de boas cores que combinam às mil
maravilhas com um cenário de Outono ou com as decorações
de Natal na igreja. "Pressinto que está para acontecer
alguma coisa horrível", disse-me ela, "Estou
pálida?"
Estava tão pálida como uma beterraba que tivesse
recebido más notícias de repente.
"Está mais bonita do que o normal", disse
eu, "mas isso para si é tão fácil."
Antes de ela ter atingido o exacto alcance do comentário,
já começara a função; os cães
tinham descoberto uma raposa escondida no meio de umas giestas.
- Eu já sabia - disse Clovis. - Em todas as histórias
de caça à raposa que ouvi havia sempre uma raposa
e moitas de giesta.
- Constance e eu tínhamos belas montadas - continuou
a Baronesa serenamente - e não tivemos dificuldade
em nos mantermos na primeira leva, embora fosse uma corrida
bastante puxada. Mas lá para o fim devemos ter seguido
um caminho um pouco independente, porque nos perdemos dos
cães, e vimo-nos a andar à toa aos tropeções
a milhas de qualquer sítio. Era uma coisa exasperante,
e a minha boa disposição começava a ceder
aos poucos, quando ao abrir caminho por uma sebe complacente
deparámos com o alegre espectáculo dos cães
em grande berraria num valado mais abaixo.
"Lá vão eles - gritou Constance, e acrescentou
num sobressalto: - Mas que diabo de caça será
aquela?"
Não era, de certeza, nenhuma raposa deste mundo. Tinha
o dobro do tamanho, tinha uma cabeça curta e feia,
e um pescoço grosso enorme.
"É uma hiena - gritei. - Deve ter fugido do Parque
de Lord Pabham."
Nesse momento o bicho perseguido virou-se e enfrentou os perseguidores,
e os cães (eram só uns seis pares) ficaram em
semicírculo e com um ar aparvalhado. Era evidente que
se tinham separado do resto da matilha na pista daquele cheiro
estranho, e não estavam muito certos de como lidar
com a presa agora que a tinham apanhado.
A hiena saudou a nossa chegada com inequívoco alívio
e manifestações de amizade. Provavelmente estava
habituada a uma invariável amabilidade por parte dos
humanos, ao passo que a primeira experiência com cães
lhe deixara uma má impressão. Os cães
pareciam mais embaraçados do que nunca enquanto a presa
exibia a sua súbita intimidade connosco, e o ténue
ressoar de uma trompa ao longe foi tomado como o desejado
sinal para uma partida discreta. Constance, eu e a hiena ficámos
sós no crepúsculo que descia.
"Que vamos fazer?", perguntou Constance.
"Não há como você para fazer perguntas",
disse eu.
"Bem, não podemos ficar aqui a noite toda com
uma hiena", replicou ela.
"Não sei qual é a sua ideia de conforto,"
disse eu, "mas não tenciono passar aqui a noite
toda, mesmo sem uma hiena. Pode não ser um lar feliz,
o meu, mas pelo menos tem água quente e fria, e serviço
doméstico, e outras comodidades que não encontraríamos
aqui. O melhor que temos a fazer é seguir para aquele
renque de árvores à direita; tenho a impressão
de que a estrada de Crowley fica logo a seguir."
Trotámos devagar seguindo o trilho apagado de uma carroça,
com o bicho seguindo alegremente atrás de nós.
"Que raio havemos de fazer com a hiena", veio a
pergunta inevitável.
"Que é que se costuma fazer com as hienas?",
perguntei mal-humorada.
"Nunca tive nada a ver com nenhuma até agora",
disse Constance.
"Bem, eu também não. Se ao menos soubéssemos
de que sexo é podíamos pôr-lhe um nome.
Talvez lhe pudéssemos chamar Esmé. Dá
para as duas hipóteses.
Ainda havia luz suficiente para distinguirmos as coisas à
beira do caminho, e a nossa atenção entorpecida
teve um sobressalto de alerta quando deparámos com
um miúdo cigano seminu que andava a apanhar amoras
numas moitas rasteiras. A súbita aparição
de duas amazonas e uma hiena puseram-no em fuga aos berros,
mas seja como for dificilmente poderíamos obter qualquer
informação geográfica útil de
tal fonte; mas havia uma probabilidade de virmos a encontrar
um acampamento de ciganos pelo caminho. Esperançadas,
seguimos caminho, mas sem que nada acontecesse por mais quilómetro
e meio uma milha ou coisa assim.
"Pergunto-me o que andaria uma criança a fazer
ali", disse Constance passados instantes.
"A apanhar amoras. Obviamente."
"Não me agradou o modo como berrava", continuou
Constance, "parece que ainda tenho o choro dele nos ouvidos."
Não trocei das fantasias mórbidas de Constance;
para dizer a verdade, a mesma sensação de ser
perseguida por um persistente gemido aflito, tinha-se insinuado
nos meus nervos já exaustos. A precisar de companhia,
chamei por Esmé, que tinha ficado algures para trás.
Com uns quantos saltos enérgicos pôs-se a par
de nós, e depois desapareceu à nossa frente.
O acompanhamento de gemidos estava explicado. O ciganito ia
firmemente, e imagino que dolorosamente, aferrado pelas presas
da hiena.
"Santo nome de Deus!" gritou Constance, "que
raio havemos de fazer? Que vamos fazer?"
Estou perfeitamente convencida de que no Juízo Final
Constance há-de fazer mais perguntas do que qualquer
dos Serafins jurados.
"Não podemos fazer nada?", insistia ela lacrimejante,
enquanto Esmé trotava ligeira à frente dos nossos
cavalos cansados.
Pelo meu lado fazia tudo o que me ocorria no momento. Vociferava,
ralhava, adulava, em inglês, francês e em linguagem
de couteiro; fazia gestos inúteis no ar com a minha
chibata esfiapada; atirei ao animal a caixa das sanduíches;
realmente, não sei que mais poderia ter feito. E lá
continuámos a arrastar-nos no crepúsculo que
se adensava, com a silhueta desengonçada arrastando-se
à nossa frente, e a toada de uma música lúgubre
pairando nos ouvidos. Subitamente Esmé mergulhou numas
moitas espessas ao lado do caminho, onde não a podíamos
seguir; o gemido cresceu para um guincho e depois calou-se
completamente. Passo sempre depressa esta parte da história,
porque realmente é bastante horrível. Quando
o bicho se juntou de novo a nós, depois de uma ausência
de alguns minutos, havia nele um ar de compreensão
resignada, como se soubesse que tinha feito uma coisa que
desaprovávamos, mas que sentia como perfeitamente justificável.
"Como pode permitir que essa fera esfaimada trote a seu
lado?", perguntou Constance. Parecia-se mais do que nunca
com uma beterraba albina.
"Em primeiro lugar, não posso impedi-lo",
disse eu. "E em segundo lugar, pode ser muitas coisas,
mas esfaimada duvido que seja neste momento."
Constance estremeceu. "Acha que o pobrezinho sofreu muito?",
veio mais uma das perguntas desnecessárias dela.
"Tudo indica que sim", disse eu. "Por outro
lado, é certo que pode ter estado a chorar por pura
birra. As crianças às vezes são assim."
Era quase noite cerrada quando de repente emergimos em plena
estrada. O clarão de uns faróis e o chiar de
um motor passaram por nós simultaneamente a uma proximidade
inquietante. Um baque e o som agudo de um guincho seguiram-se
um segundo depois. O carro parou, e quando dirigi a montada
para o local deparei com um homem novo curvado sobre uma massa
escura imóvel estendida na berma.
"Matou a minha Esmé", exclamei azeda.
"Lamento imenso", disse o jovem. "Sou criador
de cães, e compreendo como se deve sentir. Farei o
que puder para a compensar."
"Faz favor de a enterrar imediatamente", disse eu.
Acho que tenho o direito de lhe pedir isso."
"Traz a pá, William", ordenou ao chauffeur.
Via-se que funerais improvisados nas bermas das estradas eram
contingências que estavam previstas.
Levou algum tempo a cavar uma campa suficientemente grande.
"Sim senhor, um sujeito respeitável", disse
o cavalheiro, ao mesmo tempo que o cadáver era rolado
para a vala. "Dá a impressão que devia
ser um animal de bastante valor."
"Ficou em segundo lugar, em Birmingham, na categoria
de cachorros o ano passado", disse eu com desembaraço.
Constance fungou ruidosamente.
"Não chore, querida", disse eu numa voz entrecortada.
"Foi tudo rapidíssimo. Não deve ter sofrido
muito."
"Por favor", disse o jovem num tom sentido, "tem
de me deixar fazer alguma coisa como forma de a compensar."
Recusei delicadamente, mas como ele insistia acabei por lhe
dar a minha morada.
Naturalmente, não dissemos palavra sobre os episódios
do princípio da noite. Lord Pabham nunca anunciou o
desaparecimento da sua hiena; há um ano ou dois um
animal estritamente frutívoro saíra do parque
dele e vira-se obrigado a pagar indemnizações
em onze casos de acidentes com ovelhas e praticamente repovoara
as capoeiras dos vizinhos; por isso, uma hiena à solta
era capaz de equivaler a qualquer coisa à escala de
um subsídio do Governo. Os ciganos mostraram-se igualmente
discretos quanto ao desaparecimento do filhote; não
me parece que nos grandes acampamentos eles saibam, mais filho
menos filho, quantos têm ao certo.
A Baronesa fez uma pausa com ar pensativo, e depois continuou:
Mas a aventura teve uma sequela. Recebi pelo correio um pequeno
alfinete de diamantes amoroso, com o nome de Esmé gravado
num raminho de alecrim. Por acaso, também, perdi a
amizade de Constance Broddle. Está a ver, quando vendi
o alfinete recusei-me com toda a razão a dar-lhe qualquer
parte do lucro. Fiz notar que a parte Esmé do caso
tinha sido inventada por mim, e que a parte hiena pertencia
a Lord Pabham, se realmente a hiena era a dele, coisa de que,
evidentemente, não tenho nenhuma prova.
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