| Dionisus do Douro!
Pêlos no púbis como um homem Cachos nas mãos ossudas! E bêbado de mosto e de alegria É luz da negra noite e do claro dia! -- Miguel Torga |
Canção do Vinho do Porto
Oiro líquido para os olhos, Doirados sonhos desperto: Jardim d'Abril para o olfato, Sou prà boca um céu aberto! Do Chipre o clássico vinho E a própria ambrósia dos Numes, Nem aos calcanhares me chegam Na luz, na cor, nos perfumes. Velha Roma, abranda a embófia, Desse teu orgulho eterno: Ao pé de mim é zurrapa O teu cantado Falerno! Metido nesta garrafa Por mão sabida e prudente, Como jóia, fui passando Pelas mãos de muita gente. Até que um dia, por voltas Da sorte obscura e secreta, Vim ter, sem saber porquê, À garrafeira dum poeta. Sem saber porquê, não digo, Sei muito bem por que vim: É poeta, sou digno dele, Como ele é digno de mim. -- Eugénio de Castro |
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As Farpas, I
O vinho do Porto é um vinho aguardentado, produzido na mais antiga região demarcada do mundo, no Vale do Douro, no nordeste de Portugal. Para além dos factores naturais, como o solo, clima e posição das vinhas, o segredo deste vinho único - ex-libris dos vinhos generosos - reside na adição, durante a fermentação, da aguardente vínica da região duriense ao mosto. E, dando a palavra a Ramalho Ortigão, "Engana-se muito quem cuida que o vinho do Porto é um simples produto químico. Não, o vinho do Porto é principalmente uma obra de arte, um problema de gosto.
A matéria-prima empregada na confecção deste licor é a uva, a jeropiga, a aguardente, com a mesma jeropiga e com a mesma uva fazem-se cem, fazem-se duzentos, fazem-se inumeráveis tipos de vinhos, todos diversos uns dos outros. [...]
Abandonado a si mesmo, tal como o deu a uva pisada e espremida, o vinho do Porto seria uma bebida extremamente inferior a qualquer bom vinho do Dão ou da Bairrada. O que faz o vinho? - dizem os vinhateiros - É a educação.
A Viagem Vertical
Aproximou-se um empregado relativamente jovem, com ar sombrio. Um Porto disse Mayol ao mesmo tempo que passava revista pormenorizada ao pessoal concentrado no bar: clientes de rosto congestionado, apoplécticos, com focinhos de buldogue, faces violáceas, estúpidos olhos injectados de sangue e enormes patilhas estilo orangotango. Um panorama nada animador, uma paisagem e uma paisanagem que dava para fugir de medo.
- Não sei se tenho Porto - disse o empregado de ar sombrio.
- Pois faça o favor de verificar - respondeu muito educadamente Mayol, que tinha a impressão de estar a falar com um discípulo directo do conde Drácula, e a quem convinha não incomodar muito. - Tenha a amabilidade, a bondade de perguntar se há Porto.
Levaram uma eternidade a procurá-lo, mas a espera acabou por valer a pena. Tinham Porto. A Mayol, depois de tantos contratempos nos últimos dias, pareceu-lhe uma notícia muito reconfortante. Enquanto lhe serviam o vinho, ouviu-se o violento estrondo de um trovão, a que se seguiu um espirro e a sonora blasfémia de um cliente. Mayol fez de conta que não ouvira nada e ficou pensativo a contemplar a cor de acaju do Porto, uma cor parecida com a do vinho - por recomendação médica não podia beber outro álcool que não fosse vinho em doses muito pequenas - que lhe oferecera o filho mais velho, o seu filho Ramón, da última vez que se encontraram.
-- Enrique Vila-Matas, traduzido por José Agostinho Baptista para a Assírio & Alvim, 1999
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