19 março 2007

A outra razão de Alonso Quijano

Todos sabemos como a história começa: naquele lugar de La Mancha cujo nome nunca viremos a conhecer, vivia um fidalgo pobre chamado Alonso Quijano que, um dia, em consequência do muito ler e do muito imaginar, passou do juízo à loucura, tão simplesmente como quem abre uma porta e a torna a fechar. Assim o quis Cervantes, acaso porque à mentalidade do seu tempo repugnasse aceitar que um homem em posse plena das faculdades mentais, mesmo sendo apenas uma personagem de romance, decidisse, por um acto de vontade, deixar de ser quem tinha sido para converter-se em outro: graças à loucura, a rejeição das regras do chamado comportamento racional torna-se pacífica, não problemática, uma vez que permitirá desprezar qualquer aproximação ao louco que não proceda em conformidade com as vias que têm a cura como objectivo. Do ponto de vista dos contemporâneos de Cervantes e das personagens do livro, Quijote é louco porque Quijano enlouqueceu. Em momento algum se insinua a suspeita de ser Quijote, tão-somente, ou, pelo contrário, de supremo modo, o outro de Quijano. Não obstante, Cervantes tem uma visão muito precisa da irredutibilidade das consequências da mudança de Quijano, tanto assim que reforma e reorganiza de alto a baixo o mundo em que vai entrar essa entidade nova que é Quijote, mudando os nomes e as qualidades de todos os seres e coisas: a estalagem torna-se castelo, os moinhos são gigantes, os rebanhos exércitos, Aldonza transforma-se em Dulcineia, para não falar de um mísero cavalo promovido a épico Rocinante e de uma bacia de barbeiro alçada à dignidade de elmo de Mambrino. Já Sancho, tendo embora de viver as aventuras e as imaginações de Quijote, não precisará nunca de enlouquecer nem de mudar de nome: mesmo quando o proclamarem governador de Barataria continuará a ser, no físico e no moral, mas sobretudo na sólida identidade que sempre o definiu, Sancho Panza. Nada mais, mas também nada menos.
Que nos diz Cervantes da vida de Alonso Quijano antes que a suposta loucura tivesse transformado o mal favorecido homem, que o foi tanto de figura como de fortuna, nesse ardoroso e infatigável cavaleiro a quem as derrotas nunca diminuirão o ânimo, antes parecerá encontrar nelas o alento para o combate seguinte, infinitamente perdido e infinitamente recomeçado? Cervantes, dessa vida enigmática, nada nos quis dizer. E, contudo, Alonso Quijano frisava já os 50 anos de idade quando Cervantes o plantou inteiro na primeira página do Quijote. Mesmo numa aldeia perdida de La Mancha, tão perdida que nem o seu nome se achou, um homem de 50 anos teria tido, por força, uma vida, acidentes, encontros, sentimentos vários. Seus pais, quem foram? De que irmão ou irmã lhe veio a sobrinha? Não teve Alonso Quijano filhos, um varão, por exemplo, que por não ter nascido à sombra do santo sacramento do matrimónio foi deixado ao deus-dará? E a mãe desse filho, quem teria sido? Uma moça de aldeia, barregã por uns tempos, ou apenas tomada de ocasião em tarde de calor, no meio da seara ou atrás de um valado? Conhecemos tudo da vida de D. Quijote de la Mancha, porém nada da vida de Alonso Quijano, no entanto o mesmo homem, primeiro dotado de razão, depois deixado dela, senão, como me parece hipótese mais sedutora, deixada ela por ele, conscientemente, para que Alonso Quijano pudesse, sob a capa de uma loucura que passaria a justificar tanto o sublime como o ridículo, ser enfim outro, para como outro poder viver em outros lugares e fazer da labrega Aldonza (quem sabe se antes mãe de filhos que não foram reconhecidos?) uma puríssima e inalcançável Dulcineia, mudando assim, como numa operação alquímica, o chumbo cinzento em ouro resplandecente.
É neste ponto, segundo entendo, que deparamos com a questão crucial. Se Alonso Quijano foi o mero invólucro físico de um delírio mental produzido pelo muito ler e pelo muito imaginar, então não haveria grandes diferenças entre ele e aqueles outros loucos que, dois ou três séculos mais tarde, se tomaram por Napoleão Bonaparte só porque dele ouviram falar, ou acerca dele leram, como capitão, general e imperador. Quanto a mim, prefiro acreditar que, em um dia da sua insignificante vida, Alonso Quijano decidiu ser outra pessoa, e, tendo, por isso mesmo, que colocar-se contra o seu tempo, onde só a pessoa Quijano tinha lugar, optou por fazer aquilo que então já ninguém ousaria: restabelecer a ordem da cavalaria andante, pondo ao seu serviço, por inteiro, alma e corpo. Se falasse francês, Quijano poderia ter antecipado, naquele seu momento fundador, o dito célebre de Rimbaud: La vraie vie est ailleurs. Pelo menos, imaginemos que, ao deixar a tranquilidade e a segurança da sua casa, grotescamente armado, montado na esquelética cavalgadura, teria proferido, no seu castelhano manchego, estas palavras, postas aqui também na língua de Rimbaud para manter o paralelismo, e que seriam, ao mesmo tempo, uma divisa e um programa: Le vrai moi est ailleurs. E foi assim que começou a caminhar, já outro, e portanto à procura de si mesmo.
Este jogo entre um eu (Quijano) que se torna em um outro (Quijote), ponto forte, se posso atrever-me a dizê-lo, desta interpretação, encontra uma simetria recente no conhecido sistema de espelhos, cientemente organizado por Fernando Pessoa, que é a constelação heteronímica. Sendo os tempos diferentes, Pessoa não necessitou enlouquecer para se tornar nesses outros Napoleões que são o Álvaro de Campos da Tabacaria, o Alberto Caeiro do Guardador de Rebanhos, o Ricardo Reis das Odes, ou o Bernardo Soares do Livro do Desassossego. Curiosamente, porém (tanto pode, afinal, a suspeita social que pesa sobre aqueles que, de modo directo ou indirecto, aspiraram a retirar-se da humana convivência), o próprio Fernando Pessoa, para dar do seu caso uma explicação que não relevasse da simples vontade de ser outro (ou, mais complexamente, da necessidade de não ser quem era), diagnosticou-se a si mesmo como histero-neurasténico, por esta maneira transitando, com perturbador à vontade, das auras poéticas ao foro psiquiátrico. Isso lhe servirá para explicar os seus heterónimos, atribuindo-se a si mesmo uma «tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». (Falar de «despersonalização», neste caso, não parece extremamente rigoroso, quando, pelo contrário, vamos ser testemunhas, não de uma despersonalização – situação, suponho, em que o poeta, tendo deixado de ser quem era, passaria a interrogar-se sobre quem teria sido antes –, mas de uma multipersonalização sucessiva em que o poeta, no mesmo instante em que deixa de ser ele próprio, assiste à ocupação do vazio por uma nova entidade poética, tornando portanto a ser alguém, na medida em que havia podido tornar-se outro).
É interessante observar, repito, como Pessoa nos quer fazer crer na «origem orgânica» dos seus heterónimos, aliás em total e flagrante contradição com a descrição que faz do «nascimento» deles, que mais parece corresponder a uma sequência de lances de um jogo dentro de outro jogo, como caixas chinesas saindo de caixas chinesas: «Lembrei-me de inventar um poeta bucólico», «aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir uns discípulos», «arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente», «de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo (Álvaro de Campos)»... É de supor que o aparecimento dos outros heterónimos, ou semi-heterónimos, que foram António Mora, Vicente Guedes ou Bernardo Soares, tenha percorrido caminhos mentais similares e modos de elaboração e definição paralelos. Para fazer um Quijote, Cervantes tinha de levar Quijano à loucura, ao passo que Fernando Pessoa, que já levava dentro de si a tentação de mil vidas diferentes, e que, de alguma maneira, já era personagem de si mesmo, não podendo enlouquecer deveras e tornar-se, nessa loucura, outro, criou para seu uso e nossa mistificação uma fingida histero-neurastenia, ao abrigo da qual se poderia permitir quantas multiplicações o seu espírito fosse capaz de suportar. Parece claro, pois, que a ironia pessoana se vai exercer em duas direcções distintas: a do leitor, obrigado pelo poder cumpulsivo de uma expressão artística invulgar a tomar a sério o que é pura mistificação, e a do próprio Pessoa, agente e objecto conscientes dessa mesma mistificação.

Ou muito me engano, ou não é este o caso de Cervantes. É verdade que ele, com aparente frieza e indiferença, parece querer expor, primeiro Quijano e depois Quijote, à irrisão familiar e pública, mas esse homem uno e duplo, Janos bifronte, cabeça de duas caras, de quem o leitor se rirá mil vezes, também será capaz mil vezes de despertar no nosso espírito os mais subtis sentimentos de compaixão e solidariedade, e, como se tal fosse pouco, criar em nós o desejo profundo e irresistível de identificação com alguém como esse Quijote – personagem incorpórea de romance, criatura feita de tinta e papel -, em verdade desprovido de tudo, menos de ansiedade e de sonho. Ainda que não o queira confessar, todo o leitor, no segredo do seu coração, desejaria ser
D. Quijote. Talvez pelo facto de ele não ter consciência do seu ridículo e nós vivermos sujeitos a ela em todas as horas lúcidas, mas sobretudo, creio, porque na aventura risível do Cavaleiro da Triste Figura está presente, sempre, o sentido mais dramaticamente interiorizado e mascarado da existência humana: o da sua finitude. Sabemos de antemão que nenhuma das aventuras de Quijote será mortal ou sequer realmente perigosa, que, pelo contrário, cada uma delas será motivo de novas gargalhadas, mas, em contradição com esta tranquilizadora certeza, que resulta do pacto estabelecido com o Autor desde as primeiras páginas, percebemos que, afinal, Quijote se encontra, a cada passo que dá, em permanente risco, como se, em vez de ali ter sido posto por Cervantes para meter a ridículo os romances de cavalaria, fosse a premonitória representação do homem moderno, sem toga nem coturnos, armado de uma razão desfalecente, incapaz de chegar ao outro por não poder conhecer-se a si mesmo, dividido tragicamente entre ser e querer ser, entre ser e ter sido.
Essa razão, porém, a que chamei desfalecente, como um fio que constantemente se parte e cujas pontas dilaceradas constantemente vamos tentando atar, é o único vademecum possível, quer para Quijote, quer para esse Sancho/Quijote que é o leitor. Razão de regras instáveis, por certo, mas razão trabalhando em estado de plenitude, ou razão de loucura, se aceitarmos o jogo de Cervantes, mas, tanto num caso como no outro, razão ordenadora, capaz de sobrepor leis novas ao universo das leis velhas apenas por uma introdução metódica de contrários. Pessoa dispersou-se noutros e nessa dispersão, porventura, se reencontrou. Quijano substituiu-se a si mesmo por outro enquanto a morte não chegava para fazer voltar tudo ao princípio, ao primeiro enigma e à primeira tentação: ser alguém que não fosse ele, estar num lugar que não fosse aquele.
Vítima de uma loucura simplesmente humana ou agente de uma vontade sobre-humana de mudança, Quijote procura recriar o mundo, fazê-lo nascer de novo, e morre quando compreende que não bastou ter mudado ele para que o mundo mudasse. É a última derrota de Quijano, a mais amarga de todas, a que não terá salvação. A vontade esgotou-se, não há tempo para enlouquecer outra vez.



José Saramago para o Jornal de Letras

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