Desde que S. Jerónimo meteu ombros à empresa de verter os textos da Escritura para o latim da Vulgata (na sequência da tradução grega anterior, chamada «dos Setenta»), as traduções da Bíblia são sem sombra de dúvida o melhor exemplo da força transformadora do acto de traduzir.
José Tolentino Mendonça di-lo de outro modo na apresentação da Bíblia portuguesa de João Ferreira de Almeida: «uma vez aberto o livro dos livros, o mundo deixou de ser o mesmo». O mundo e, acrescento, os próprios originais do Livro, hebraicos, gregos e aramaicos.
Depois da Vulgata, que atravessa toda a Idade Média pairando sobre a cristandade das alturas do seu latim, para ser definitivamente canonizada para o mundo católico pelo Concílio de Trento (1546), mas sem produzir grandes «efeitos de Bíblia» (como diz Henri Meschonnic) nesse mundo; depois da primeira versão inglesa (1382), estigmatizada com o ferro da heresia do Lollardismo de Wycliffe (luterano antes de Lutero, ainda no século XIV, e que inaugura a grande tradição inglesa do «tradutor invisível» e da fluência vernácula da linguagem na tradução); depois de William Tyndale, autor de uma «version for the layman» (1525) refutada por Thomas More, e queimado em 1536; depois do compromisso conciliatório da chamada «Versão autorizada» do anglicanismo (a «King James Version», de 1611); depois, é claro, da tradução de Lutero (feita entre 1521 e 1534) para uma língua que, de facto, não existia, um «alemão literário» forjado a partir dos dialectos, mas deixando transparecer toda a força da oralidade e do vernáculo (a linguagem «da mãe na cozinha, das crianças na rua e do homem simples no mercado», linguagem viva dirigida «contra os asnos e os fanáticos da letra», escreve Lutero na célebre Epístola sobre a tradução); depois, enfim, dessa «coisa curiosa» que é, para Fernando Pessoa, esta «Bíblia em português feita para protestantes» (a primeira completa, já tardia – 1681, o Novo Testamento, e 1753 a edição em dois volumes – e com marcas evidentes da matriz luterana), a de João Ferreira d'Almeida, ministro protestante na Batávia holandesa (hoje Jacarta) – depois destes e de tantos outros marcos nesta história de naturalizações, domesticações, instrumentalizações e metamorfoses poéticas, os textos bíblicos nunca mais foram o que terão sido nas origens. Mas não sabemos exactamente o que terão sido nas origens. Sabemos, isso sim, que as suas traduções imprimirão ao sopro e às palavras que os atravessam e os sustentam – multifacetados, aliás, num registo impressionante que vai da oralidade ritmada, traço decisivo em todo o Antigo Testamento, à expressão poética, da sentença ao provérbio, do catálogo à descrição, do preceito à fórmula mágica, da parábola à profecia –, sabemos que as traduções desta Babel de linguagens darão ao texto do Livro múltiplos rostos e lhe atribuirão os mais variados papéis. Abrir o Livro à tradução significou abrir mil portas, desimpedir ou atravancar mil caminhos no longo caminho da cultura ocidental judaico-greco-romano-cristã, nas suas vertentes religiosa, linguística, literária, também político-ideológica, nos seus meandros mais propriamente culturais e em algumas das suas grandes vicissitudes históricas e das suas maiores contradições e provações. Alguns desses caminhos foram revolucionários, mesmo incendiários, outros haveriam de ter uma influência ímpar na formação ou afirmação de uma língua unificada e literária, em particular no espaço inglês e no alemão.
Mas é também o caso desta Bíblia de Almeida, que ocupa um lugar sem paralelo na modesta tradição portuguesa de tradução do texto sagrado. No que à sua qualidade estética diz respeito, não seria ousadia dizer que ela assume – ressalvadas as distâncias devidas ao estádio da língua e ao hiato entre os padrões literários classicizantes do século XVII e os do nosso tempo – um carácter próximo do de alguns ensaios parciais realizados por poetas como Herberto Helder, Fiama ou José Tolentino Mendonça sobre textos do Antigo Testamento, com destaque para o Cântico Maior (ou até por uma judia alemã como Else Lasker-Schüler nas recriações livres de figuras bíblicas nas suas Baladas Hebraicas, editadas pela Assírio & Alvim em 2002).
O que os move a todos é essencialmente a vibração rítmica e a força das imagens, que suscitam caminhos de tradução também vibráteis ou quase erotizantes, em que a palavra é literalmente posta a arder, com resultados poeticamente belíssimos, num trabalho que, como acentua José Tolentino Mendonça para a sua versão do Cântico dos Cânticos (Livros Cotovia, 1997), busca não só «o sentido escondido das palavras da Escritura, mas também o do espaço em branco que existe entre elas».
Traduz-se então – como também exige esse leitor-tradutor radical do Antigo Testamento que é Henri Meschonnic – pela escuta: escuta dos acentos do hebraico, traduzidos em vários graus dos brancos, escuta dos paralelismos e repetições que modulam o ritmo, escuta do sopro da oralidade. Neutralizam-se as oposições ocidentais entre prosa e poesia, letra e sentido, e caminha-se por aquela via que Walter Benjamin, no tão citado ensaio sobre «A tarefa do tradutor», pedia à tradução (em especial dos textos sagrados): uma versão «interlinear» ao mesmo tempo literal e livre, em que se conjuguem «a língua e a revelação».
É óbvio que a maior parte das traduções correntes da Bíblia, feitas a partir da Vulgata e ajustadas ao longo de séculos a necessidades e interesses confessionais ou pedagógicos, não corresponde a nenhuma destas exigências: aclaram o que, por natureza e pela acção da distância temporal, é obscuro, tendem a colmatar, sem brechas, os brancos da respiração do hebraico, a «naturalizar» e a «domesticar» o que é estranho e alheio. A isto foge a Bíblia de João Ferreira d'Almeida, no texto agora fixado por J. Tolentino Mendonça (que diverge do das versões mais correntes, ditas «revista e corrigida» ou «revista e actualizada»).
Não sendo uma tradução com pretensões meramente poéticas – longe disso, o seu autor é um ministro protestante que tem atrás de si um século e meio de debate teológico (e ideológico) em torno da tradução da Bíblia –, é uma versão na qual corre a seiva viva do vocábulo justo e se sente uma elegância literária que deixa transparecer, para além do gosto classi-cizante apurado da língua, a lição de Lutero, nomeadamente nas três regras que este avança para a tradução da Bíblia, num pequeno opúsculo intitulado «Sumários sobre os Salmos e as causas da tradução» (1532), contemporâneo do seu próprio trabalho de trazer a casa o Antigo Testamento:
1. Respeita a natureza divina da Palavra das Escrituras (onde, como já havia dito S. Jerónimo na Carta a Pamáquio, «até a estrutura da frase é mistério»);
2. Usa a língua viva, seguindo a «natureza da nossa língua-mãe»;
3. Dá atenção à gramática (aqui, no sentido antigo, e ainda Renascentista de: o estilo e a forma da frase).
Mais comparações e as ilustrações de Ilda David no blogue Escrito a Lápis, extraordinário!
José Tolentino Mendonça di-lo de outro modo na apresentação da Bíblia portuguesa de João Ferreira de Almeida: «uma vez aberto o livro dos livros, o mundo deixou de ser o mesmo». O mundo e, acrescento, os próprios originais do Livro, hebraicos, gregos e aramaicos.
Depois da Vulgata, que atravessa toda a Idade Média pairando sobre a cristandade das alturas do seu latim, para ser definitivamente canonizada para o mundo católico pelo Concílio de Trento (1546), mas sem produzir grandes «efeitos de Bíblia» (como diz Henri Meschonnic) nesse mundo; depois da primeira versão inglesa (1382), estigmatizada com o ferro da heresia do Lollardismo de Wycliffe (luterano antes de Lutero, ainda no século XIV, e que inaugura a grande tradição inglesa do «tradutor invisível» e da fluência vernácula da linguagem na tradução); depois de William Tyndale, autor de uma «version for the layman» (1525) refutada por Thomas More, e queimado em 1536; depois do compromisso conciliatório da chamada «Versão autorizada» do anglicanismo (a «King James Version», de 1611); depois, é claro, da tradução de Lutero (feita entre 1521 e 1534) para uma língua que, de facto, não existia, um «alemão literário» forjado a partir dos dialectos, mas deixando transparecer toda a força da oralidade e do vernáculo (a linguagem «da mãe na cozinha, das crianças na rua e do homem simples no mercado», linguagem viva dirigida «contra os asnos e os fanáticos da letra», escreve Lutero na célebre Epístola sobre a tradução); depois, enfim, dessa «coisa curiosa» que é, para Fernando Pessoa, esta «Bíblia em português feita para protestantes» (a primeira completa, já tardia – 1681, o Novo Testamento, e 1753 a edição em dois volumes – e com marcas evidentes da matriz luterana), a de João Ferreira d'Almeida, ministro protestante na Batávia holandesa (hoje Jacarta) – depois destes e de tantos outros marcos nesta história de naturalizações, domesticações, instrumentalizações e metamorfoses poéticas, os textos bíblicos nunca mais foram o que terão sido nas origens. Mas não sabemos exactamente o que terão sido nas origens. Sabemos, isso sim, que as suas traduções imprimirão ao sopro e às palavras que os atravessam e os sustentam – multifacetados, aliás, num registo impressionante que vai da oralidade ritmada, traço decisivo em todo o Antigo Testamento, à expressão poética, da sentença ao provérbio, do catálogo à descrição, do preceito à fórmula mágica, da parábola à profecia –, sabemos que as traduções desta Babel de linguagens darão ao texto do Livro múltiplos rostos e lhe atribuirão os mais variados papéis. Abrir o Livro à tradução significou abrir mil portas, desimpedir ou atravancar mil caminhos no longo caminho da cultura ocidental judaico-greco-romano-cristã, nas suas vertentes religiosa, linguística, literária, também político-ideológica, nos seus meandros mais propriamente culturais e em algumas das suas grandes vicissitudes históricas e das suas maiores contradições e provações. Alguns desses caminhos foram revolucionários, mesmo incendiários, outros haveriam de ter uma influência ímpar na formação ou afirmação de uma língua unificada e literária, em particular no espaço inglês e no alemão.
Mas é também o caso desta Bíblia de Almeida, que ocupa um lugar sem paralelo na modesta tradição portuguesa de tradução do texto sagrado. No que à sua qualidade estética diz respeito, não seria ousadia dizer que ela assume – ressalvadas as distâncias devidas ao estádio da língua e ao hiato entre os padrões literários classicizantes do século XVII e os do nosso tempo – um carácter próximo do de alguns ensaios parciais realizados por poetas como Herberto Helder, Fiama ou José Tolentino Mendonça sobre textos do Antigo Testamento, com destaque para o Cântico Maior (ou até por uma judia alemã como Else Lasker-Schüler nas recriações livres de figuras bíblicas nas suas Baladas Hebraicas, editadas pela Assírio & Alvim em 2002).
O que os move a todos é essencialmente a vibração rítmica e a força das imagens, que suscitam caminhos de tradução também vibráteis ou quase erotizantes, em que a palavra é literalmente posta a arder, com resultados poeticamente belíssimos, num trabalho que, como acentua José Tolentino Mendonça para a sua versão do Cântico dos Cânticos (Livros Cotovia, 1997), busca não só «o sentido escondido das palavras da Escritura, mas também o do espaço em branco que existe entre elas».
Traduz-se então – como também exige esse leitor-tradutor radical do Antigo Testamento que é Henri Meschonnic – pela escuta: escuta dos acentos do hebraico, traduzidos em vários graus dos brancos, escuta dos paralelismos e repetições que modulam o ritmo, escuta do sopro da oralidade. Neutralizam-se as oposições ocidentais entre prosa e poesia, letra e sentido, e caminha-se por aquela via que Walter Benjamin, no tão citado ensaio sobre «A tarefa do tradutor», pedia à tradução (em especial dos textos sagrados): uma versão «interlinear» ao mesmo tempo literal e livre, em que se conjuguem «a língua e a revelação».
É óbvio que a maior parte das traduções correntes da Bíblia, feitas a partir da Vulgata e ajustadas ao longo de séculos a necessidades e interesses confessionais ou pedagógicos, não corresponde a nenhuma destas exigências: aclaram o que, por natureza e pela acção da distância temporal, é obscuro, tendem a colmatar, sem brechas, os brancos da respiração do hebraico, a «naturalizar» e a «domesticar» o que é estranho e alheio. A isto foge a Bíblia de João Ferreira d'Almeida, no texto agora fixado por J. Tolentino Mendonça (que diverge do das versões mais correntes, ditas «revista e corrigida» ou «revista e actualizada»).
Não sendo uma tradução com pretensões meramente poéticas – longe disso, o seu autor é um ministro protestante que tem atrás de si um século e meio de debate teológico (e ideológico) em torno da tradução da Bíblia –, é uma versão na qual corre a seiva viva do vocábulo justo e se sente uma elegância literária que deixa transparecer, para além do gosto classi-cizante apurado da língua, a lição de Lutero, nomeadamente nas três regras que este avança para a tradução da Bíblia, num pequeno opúsculo intitulado «Sumários sobre os Salmos e as causas da tradução» (1532), contemporâneo do seu próprio trabalho de trazer a casa o Antigo Testamento:
1. Respeita a natureza divina da Palavra das Escrituras (onde, como já havia dito S. Jerónimo na Carta a Pamáquio, «até a estrutura da frase é mistério»);
2. Usa a língua viva, seguindo a «natureza da nossa língua-mãe»;
3. Dá atenção à gramática (aqui, no sentido antigo, e ainda Renascentista de: o estilo e a forma da frase).
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