RIP Professor Mário Jorge Torres (1949-2025).


 

O académico e crítico de cinema Mário Jorge Torres morreu esta madrugada, aos 76 anos, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde estava internado, confirmou ao PÚBLICO o professor catedrático Mário Avelar, seu colega e amigo.

"Recordo do Mário Jorge Torres a forma como inundava os filmes, o que pudéssemos pensar deles, com o seu entusiasmo – às vezes com a sua fúria. Era a sua hermenêutica", diz o jornalista e crítico Vasco Câmara, seu editor no PÚBLICO durante anos. "E de repente, todo o cinema se podia tornar magnificamente clássico, de uma beleza alpina. Contra tudo e contra todos, nesse entusiasmo. Não vou esquecer", acrescenta, recordando que a última vez que o viu assim, exuberante, dramático, com uma alegria infantil, depois do visionamento para a imprensa, foi na estreia de Titanic, o filme de James Cameron. "Foi também uma época especialmente empática, de 'espírito de corpo', nesse sentido irrepetível, entre os críticos deste jornal".

Professor associado aposentado no Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde iniciou a carreira universitária em 1974 e se reformou em 2017, tinha como principais áreas de investigação a Literatura e Cultura Norte-Americana, Literatura Comparada e Estudos Fílmicos. "Foi fundamental para esta relação entre cinema e literatura que mais ninguém em Portugal fazia", recorda ao PÚBLICO a professora Clara Rowland, sua aluna e, mais tarde, colega.

"Na nossa faculdade, para além dos autores canónicos, partilhou com os alunos a sua investigação sobre a poesia americana do pós-guerra, com particular ênfase para a poesia beatnick, e para as vozes mais significativas da contracultura, como Jerry Rubin, passando pelos poetas da Escola de Nova Iorque", recorda ainda o académico no obituário publicado no site da faculdade.

"Mário Jorge Torres foi fundamental na Faculdade de Letras para criar a área de Literatura e Cinema e de Estudos de Interartes", lembra Clara Rowland. Para ela e outros alunos do seu curso, como Francisco Frazão, José Maria Vieira Mendes ou Clara Riso, esta foi uma das cadeiras fundamentais da faculdade. "No fundo, estruturou a nossa maneira comparatista de pensar. Devemos ao Mário Jorge Torres praticamente tudo na maneira de organizar o curso de letras a partir do cinema ou com o cinema lá no meio.”

Numa entrevista que deu a Fernando Guerreiro e José Bértolo, que acompanhava o livro feito em sua homenagem, Imitações da Vida – Cinema Clássico Americano, ensaios para Mário Jorge Torres (ed. BookBuilders), contava que o seu interesse pelo cinema começara cedo, aos quatro, cinco anos, nas sessões de cinemas de bairro com filmes de Buster Keaton e Charles Chaplin.

“Um filme que me marcou muito na altura, e que curiosamente passou numa sessão infantil: A Flor Que não Morreu [Green Mansions, 1959], realizado pelo Mel Ferrer, com a Audrey Hepburn e o Anthony Perkins. Também foi um bocado por isso que a Audrey Hepburn se tornou uma espécie de musa da minha infância e da minha juventude. Fiquei com aquela cara e aquele lado de elfo, meio-rapariga, meio-gnomo, que fez dela um bocado a diva da minha vida”, dizia nessa entrevista. "Durante muito tempo não gostava, quando escrevia para o PÚBLICO, de fazer obituários. Recusava mesmo fazê-los. Um dos primeiros foi precisamente o da Audrey Hepburn, chamei-lhe Adeus, Princesa, em memória de Férias em Roma. Portanto, tudo começou com as sessões infantis, depois continuou com os cinemas de bairro.​"

Organizado em 2020 por José Bértolo, Fernando Guerreiro e Clara Rowland, Imitações da Vida, tal como explicava a editora na sinopse, tem um título que "é uma evocação evidente de Imitation of Life, filme de Douglas Sirk estreado em 1959" e que representava para Mário Jorge Torres "o paradigma por excelência do melodrama do Cinema Clássico Americano."

O livro, vencedor do Prémio AIM 2022 na categoria de melhor colectânea de textos, reunia "com diferentes registos, temas e obsessões cinematográficas" ensaios para Mário Jorge Torres, feitos "sobretudo para aqueles que tiveram o privilégio de descobrir o cinema à luz dos seus ensinamentos, ou para os que durante anos a fio o leram nas páginas dos jornais", mas também eram "textos devedores do seu olhar revelador, do seu entusiasmo dramático".

Este livro que colegas e antigos alunos quiseram fazer quando Mário Jorge Torres se aposentou tem mais de 30 depoimentos de pessoas que passaram pelas suas aulas. "No fundo, acho que, provavelmente, o que é mais impressionante no Mário Jorge é que há imensa gente que ficou muitíssimo definida intelectualmente pelas aulas dele. Isso cria quase uma noção de geração, mas que, na verdade, até apanha várias gerações, porque ele deu aulas durante imensos anos", conclui Clara Rowland.

“Ele interessava-se mesmo, enquanto professor e enquanto investigador de cinema, pelos filmes em si”, diz ao PÚBLICO José Bértolo, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “Promovia esse contacto com os filmes, na sua materialidade, naquilo que eles são, as suas cores, os actores, as músicas. O que lhe interessava mesmo era ver os filmes.” O investigador, que tem desenvolvido trabalho nas áreas dos estudos fílmicos e foi aluno de Mário Jorge, recorda que os filmes estavam também ligados à ideia da leitura. “Ao nível do trabalho com os alunos, ele trabalhava essa questão da leitura do filme e isso é sem dúvida o grande legado do Mário Jorge: ver um filme devagar.”

José Bértolo recorda que quando deu aulas de Análise Fílmica na Faculdade de Letras convidou Mário Jorge Torres, já aposentado, para ir dar duas aulas sobre o filme Rebecca, de Hitchcock, e ele teve de ir dar uma terceira aula. “Nós vimos um filme de duas horas em seis horas de aulas, porque ele estava sempre a parar o filme para comentar, e a chamar a nossa atenção para aspectos particulares. Ou seja, cultivava muito este ver devagar, este ver com atenção. Talvez isso tenha muito a ver com o que crítico que ele foi.”

Dizia na entrevista publicada no Imitações da Vida – Cinema Clássico Americano que a sua "atenção à literatura, como professor de literatura, era uma atenção ao texto"; e que a sua atenção como professor de cinema também passava por aí; ao mesmo tempo que recordava a boutade que algumas pessoas lhe colaram, que consistiu em trocar a famosa frase "não li o livro, mas vi o filme" pelo seu contrário, "não vi o livro, mas li o filme", pois o que verdadeiramente gostava de fazer era ler filmes.

Por um lado, era "um espectador ingénuo" e por outro era "um espectador que gostava de ler o filme". Esta é também muito a dualidade do melodrama, explica ainda Bértolo. Na entrevista já citada, Mário Jorge dizia que o melodrama era a sua catarse e que tinha chegado a ele por influência da avó e da mãe, fanáticas do género. “Enquanto género, o melodrama é altamente codificado, com uma retórica e discursiva muito forte e construído justamente para se obter determinados efeitos e, ao mesmo tempo, esses efeitos são sempre do domínio do sentimento. Ele adorava isso, a construção de um universo que visava o abandono ao sentimento. Aliás, a ópera era também uma das suas grandes paixões.”

Um dos filmes que mais o marcou na adolescência foi O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que foi ver por indicação do seu professor de português no Liceu Camões, o escritor Vergílio Ferreira. "Lembro-me de ter sido o filme que mudou o meu modo de olhar para o cinema. Até aí, era uma coisa de que eu gostava imenso, mas aquilo não se colava nenhuma relação artística, era um divertimento que me fascinava. A partir daí, começou a ter outros contornos e comecei a olhar para o cinema, mesmo para o cinema americano de entretenimento, de uma maneira completamente diferente", contava na entrevista a Fernando Guerreiro e José Bértolo.

No Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, Mário Jorge Torres, que nasceu em 1949 em Lisboa, coordenou o "Projecto (Re)escrito no vento – o melodrama entre as artes", e colaborou ainda com o "Projecto Falso Movimento – Estudos sobre Escrita e Cinema", criado por Rowland. "Este foi um projecto filho das aulas do Mário Jorge", explica a professora. "Estivemos durante três anos a trabalhar sobre as relações entre Literatura e Cinema que só o Mário Jorge Torres permitiu porque ele nunca nos ensinou a pensar o cinema apenas no âmbito dos Estudos Fílmicos mas sim como uma arte sempre em diálogo com as outras artes, com a teoria da literatura e com os estudos literários. Não era só nem o lado subserviente da adaptação, nem a questão mais comunicacional do cinema dentro das artes visuais."

Na Cinemateca Portuguesa, organizou e comentou um mini-ciclo intitulado O Melodrama: do Trágico ao Operático. Co-organizou o volume Concerto das Artes (Campo das Letras, 2007) e editou Não Vi o Livro, Mas Li o Filme (Húmus, 2008) e publicou, em 2008, a monografia ​Manoel de Oliveira (edição Cahiers du Cinéma/PÚBLICO).

https://www.publico.pt/2025/12/28/culturaipsilon/noticia/morreu-mario-jorge-torres-antigo-critico-cinema-publico-2159478


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