Astérix na Lusitânia – entrevista a Fabcaro, Conrad e ao editor Vítor Silva Mota
As tradutoras não são para aqui chamadas, mas têm levado com toda a má-língua desta tribo lusa, essa colectividade pacífica de revoltados.*
Por Rita Sousa Vieira para a FNAC
Foi com Astérix que Fabcaro e Didier Conrad descobriram a paixão pela banda desenhada. Hoje, dão continuidade ao legado de Goscinny e Uderzo, divertindo-se a criar novas aventuras. Em Astérix na Lusitânia, atendem ao antigo pedido dos fãs e trazem os gauleses até Portugal, num dos seus emblemáticos “álbuns de viagem”, onde o bacalhau, o fado e a saudade se cruzam com a eterna resistência ao Império Romano.
O que vos levou a escolher a Lusitânia como cenário para esta nova aventura de Astérix?
Fabcaro: É um álbum de viagem, era importante que partissem mesmo numa. Fui ver por onde já tinham andado e reparei que nunca tinham vindo a Portugal. Para mim, a escolha era óbvia: afinal, é mesmo ao lado da Gália. Além disso, gosto muito de Portugal. Já cá estive várias vezes como turista. Falei disso ao editor e ele respondeu que há muitos anos que os leitores portugueses pediam uma aventura de Astérix passada em Portugal. Disse-me para avançar, e foi assim que tudo começou.
No processo de preparar o álbum, o que mais vos fascinou na cultura e na história de Portugal?
Fabcaro: Não fazia ideia de quem era Viriato, nem conhecia a sua história. É um pouco o vosso Vercingetórix [O chefe dos Arveni, ou Arvernos, uma das tribos célticas da Gália]. É mais antigo, claro, mas também é uma figura heroica, e isso tocou-me muito. Depois, houve a descoberta da saudade e desse espírito melancólico tão português. Gostei muito de trabalhar isso.
De que forma o espírito rebelde e resistente dos lusitanos se aproxima do dos gauleses?
Fabcaro: As duas histórias são um pouco semelhantes. Ambos os povos foram invadidos pelos romanos.
Didier Conrad: Resistiram e perderam de forma muito semelhante. Foi um chefe que reuniu os outros chefes e acabou traído por um deles… E depois foram ‘romanizados’. É uma história bastante próxima, na verdade. Estamos separados apenas pelos Pirenéus, há muitas semelhanças.
Em Astérix na Lusitânia encontramos fado, bacalhau, azulejos, calçada e até vinho verde. Foi difícil escolher o que incluir e o que deixar de fora?
Fabcaro: É preciso fazer escolhas. Quando se faz um álbum de viagem, não se pode falar de tudo, temos de selecionar apenas alguns elementos mais emblemáticos.
Didier Conrad: O vinho verde, por exemplo, não há outro igual. É algo muito típico de Portugal. Esse é o nosso critério: escolher o que é genuíno do país e não o que se encontra noutros lugares.
Fabcaro: Não dá para incluir tudo. É preciso escolher apenas alguns elementos para que o conjunto faça sentido.
Didier Conrad: Foi por isso que deixámos o futebol de fora. É um desporto demasiado comum em toda a Europa, pelo que não faria sentido incluí-lo. Em Inglaterra [Astérix entre os Bretões], por exemplo, falou-se de râguebi, por ser aí um desporto com uma importância muito maior do que noutros países.
Fabcaro: Houve uma jornalista portuguesa, em França, que nos disse: “Não falaram do frango! Há um prato de frango preparado de forma muito particular em Portugal.” E acrescentou: “Não é normal, deviam ter falado desse prato à base de frango.” E eu respondi-lhe que não dá para falar de tudo.
Didier Conrad: Acho que era uma sopa, não?
Vítor Silva Mota [editor português de Astérix]: Sim, a nossa canja.
Que desafios enfrentaram ao criar humor a partir dos estereótipos portugueses sem cair no exagero?
Fabcaro: É um desafio. Em cada álbum de viagem de Astérix, é preciso encontrar a forma de caracterizar um povo sem cair nos clichés ou na caricatura. Não é fácil conseguir esse equilíbrio. Mas, com a saudade, achei que podia ser uma bela maneira de representar o povo português. Até porque, tal como o vinho verde, é algo que não existe noutro lugar, pelo menos que eu saiba. É uma palavra difícil de definir, verdadeiramente única e tipicamente portuguesa.
O Obélix nunca escondeu a sua aversão a peixe, e agora está num país conhecido pelo bacalhau e pelo peixe grelhado. Como aproveitaram esse contraste para criar momentos cómicos típicos da série?
Fabcaro: Isso faz parte do contraste. Ele só gosta de carne, só aprecia javali. E de repente chega a um país do peixe e do bacalhau. Essa diferença é uma das bases do humor. Quando os gauleses viajam, deparam-se sempre com uma cultura que não é a deles. E os franceses, os gauleses, são um pouco fechados na sua própria maneira de viver. Isso acaba por criar situações cómicas, porque têm dificuldade em adaptar-se. Assim que encontram algo diferente, resmungam, nunca ficam satisfeitos.
Didier Conrad: É verdade que os franceses tendem a olhar para tudo o que é estrangeiro em função de si próprios. A cultura francesa é sempre a referência. Depois comparam, avaliam, medem tudo a partir daí. Não sei se isso acontece noutros países, mas os franceses são, de facto, muito assim.
O álbum inclui trocadilhos e jogos de palavras típicos de Astérix. Houve algum particularmente difícil de adaptar à cultura lusitana?
Fabcaro: Há tantas traduções que é impossível pensar em todas. Escrevemos sem pensar nas outras versões. Depois, claro, torna-se difícil para os tradutores. Por isso, é melhor perguntar ao editor se houve dificuldades nesse processo.
Vítor Silva Mota: Foi de facto um álbum difícil de traduzir, até porque a responsabilidade era muito grande, maior do que nos álbuns anteriores. No original francês existe uma paródia da língua portuguesa que era completamente intraduzível em português, por isso foi preciso recriar. No francês, as personagens lusitanas — que obviamente em francês falam francês — são identificadas pelo uso de palavras que terminam em ‘ção’, como illustração ou tradição, em vez de illustration e tradition. Em francês isso é muito divertido, porque o leitor reconhece de imediato a “marca” portuguesa.
Por outro lado, esse trocadilho tinha um segundo objetivo no álbum. O Obélix, sendo um pouco despassarado, quando chega a Portugal só ouve aquele som do ‘ão, ão, ão’. Então, quando tenta falar lusitano, começa a meter ‘ãos’ em todo o lado, mesmo em palavras que não têm essa terminação. Foi um enorme desafio para nós. Depois de muito pensar, ponderámos usar algum sotaque especial ou outra solução, mas acabámos por optar pelo ‘ó pá’. Essa expressão portuguesa pareceu-nos perfeita.
Então isso significa que expressões como ‘ó pá’ aparecem apenas na edição portuguesa?
Vítor Silva Mota: O ‘ó pá’ existe apenas na edição portuguesa. É a nossa resposta a esse desafio do ‘ão’ e cumpre bem o objetivo de criar algo particular da língua portuguesa. Nenhuma outra personagem o diz, só as lusitanas. E o Obélix está sempre a repetir ‘ó pá’, ‘ó pá’, ´ó pá’. Quando tenta falar lusitano, enfia o ‘ó pá’ em todo o lado, mesmo onde não faz sentido.
Isso quer dizer que os verdadeiros fãs de Astérix e Obélix têm de comprar a edição portuguesa e francesa?
Fabcaro: Ah, sim, têm mesmo.
Didier Conrad: E também nas outras línguas, claro. Mais de 18, na verdade.
Neste álbum, regressa uma personagem já conhecida do universo de Astérix, o pirata Baba. O que vos levou a trazê-lo de volta e que papel quiseram que desempenhasse nesta nova aventura?
Fabcaro: O Baba colocava um problema na forma como era representado graficamente, sobretudo nos traços e nos acentos. Há já algum tempo que isso criava dificuldades ao editor e ao mercado internacional, e acabaram por retirar a personagem. Achei uma pena deixarmos de a usar, porque é uma figura fantástica, especialmente num álbum de viagem. Inevitavelmente, há piratas — e se há piratas, tem de haver o Baba.
Foi preciso encontrar uma solução. Eu queria muito trazê-lo de volta, mas isso tinha de ser feito de forma adequada. A única hipótese que encontrei foi esta: ou não o usávamos, ou voltávamos a incluí-lo, mas com alguma adaptação. Acabei por lhe devolver as asas — alguém até reparou nisso — e foi a solução que me pareceu possível. Não sei se é a melhor, mas tinha mesmo vontade de o recuperar. Claro que isso gerou debate. Houve quem dissesse: “Ah, isso é wokismo, é politicamente correto.” Talvez, sim. Mas, se não o fizesse assim, já não poderíamos usar o Baba. Foi uma decisão delicada, e sei bem que é um tema que divide opiniões.
As duas personagens de reformados franceses são deliciosamente caricatas. Foi uma brincadeira inocente, ou há ali uma piscadela de olho crítica à reforma da segurança social francesa?
Fabcaro: Para começar, Portugal é um destino muito procurado por reformados, e eu tinha muita vontade de incluir um casal desse tipo na história. Também queria introduzir um casal de franceses ‘comum’ em viagem ao estrangeiro, porque, sinceramente, acho que nós, franceses, não somos os melhores turistas do mundo. Era uma forma de brincar com essa ideia dos franceses fora do seu país. Além disso, servia de pretexto para fazer algumas alusões à atualidade. Em França, o tema das reformas está muito presente. E creio que, em muitos países, esse debate continua bastante vivo.
O que mais vos divertiu no processo de criação deste álbum?
Didier Conrad: Adorei ver Astérix e Obélix disfarçados de lusitanos, com bigodes e cabelos pretos brilhantes, trajes tradicionais. Foi muito divertido, especialmente ver o Obélix um pouco atrapalhado e preocupado com a aparência física, o que nunca tinha acontecido antes.
Que reações esperam do público jovem português, que talvez conheça Astérix pela primeira vez, com este livro?
Didier Conrad: Não sabemos. Espero que gostem. Espero mesmo… Porque os mais jovens já não liam muito Astérix, o público jovem tinha-se afastado um pouco.
Fabcaro: Espero que todos os portugueses, os mais novos e os mais velhos, gostem do álbum. E sim, espero também que desperte nos jovens a vontade de mergulhar no universo de Astérix.
A que atribuem a capacidade de Astérix de atravessar gerações sem perder relevância ou encanto?
Didier Conrad: Na verdade, não sabemos bem porquê. Temos uma vaga ideia. A de que o universo de Astérix representa uma Antiguidade sonhada, algo que pode ser comum a todos. Mas, ao mesmo tempo, é através dessa Antiguidade que falamos da sociedade de hoje. E isso vai-se renovando à medida que a sociedade muda e que os álbuns vão sendo publicados. Por isso, não há razão para que deixe de ter relevância.
Depois de terem levado os gauleses a tantos destinos, o que ainda vos surpreende ou entusiasma neste formato de álbum de viagem?
Didier Conrad: Acho que, para o Fabrice [Fabcaro], que só o fez uma vez até agora, fazia sentido passar por essa etapa quase obrigatória. Agora, não sei se vai continuar. Depende da inspiração. Talvez, depois de o ter feito uma vez, sinta vontade de repetir. Mas acredito que, a seguir, acabe por mudar de direção.
Fabcaro: Já não restam muitos destinos por explorar. Ainda há alguns, claro, mas cada vez menos que seja, diria eu, credíveis. Não é que deixem de o ser totalmente, mas as possibilidades vão-se esgotando aos poucos.
Didier Conrad: Sim, há cada vez menos opções. E é preciso também encontrar ideias que funcionem bem. Se for possível fazer uma viagem a partir dessa ideia, então, normalmente, vale a pena fazê-la.
Se Astérix e Obélix visitassem o Portugal dos dias de hoje, o que acham que mais os surpreenderia?
Fabcaro: Acabei mesmo agora de comer bacalhau. Acabei mesmo agora de comer bacalhau. Aliás, saí há pouco de um restaurante. Acho que o Obélix iria adorar o bacalhau, tal como é preparado hoje. O Obélix não resistiria, certamente.
Podem partilhar alguma curiosidade dos bastidores da produção de Astérix na Lusitânia que ainda não tenha sido revelada?
Didier Conrad: Estou a lembrar-me de coisas que ainda não dissemos… Este é, de facto, um dos poucos álbuns em que houve visitas e pesquisa no terreno. Creio que o único outro caso foi o álbum passado na Córsega. Fora isso, não me parece que, nos restantes, tenham sido feitas viagens durante o processo de criação.
Fabcaro: No início, quando procurava os símbolos gastronómicos, pensei primeiro na sardinha assada e não no bacalhau. Discutimos bastante, com o editor e com a Céleste S., sobre o que seria mais emblemático: o bacalhau ou a sardinha assada. E acabámos por escolher o bacalhau. Lembro-me bem dessa hesitação.
Astérix e Obélix fazem parte do imaginário coletivo há mais de 60 anos. Como foi o vosso primeiro contacto com este universo e o que vos continua a fascinar nele?
Didier Conrad: Lemos Astérix aos sete anos... Em ambos os casos, foi a nossa mãe que nos ofereceu o primeiro álbum. Mas, como temos idades diferentes, o primeiro que eu li foi Astérix, o Gaulês [1961]. O que mais nos marcou foi a mudança que aquilo representava: não havia nada parecido com Astérix quando o lemos pela primeira vez. Por isso, marcou-nos profundamente, sem dúvida. No meu caso, foi mesmo uma das razões que me levou a fazer banda desenhada.
Fabcaro: Sim, também para mim. O Grande Fosso foi uma das primeiras bandas desenhadas que li, em 1980. Foi um verdadeiro choque, aquelas personagens eram incrivelmente bem concebidas. E o Obélix era um motor de comédia fantástico. Era divertido, cheio de aventura… Tudo começou aí, aos sete anos, para os dois.
O que é que estão a ler?
Fabcaro: Neste momento estou a ler um romance, o mais recente do Jonathan Coe.
*«É um fenómeno curioso:
o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado,
mas não passa disto.
Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.»
Miguel Torga

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