Graças à Poison Ivy ;), reproduzido aqui
Raras vezes os deputados têm uma responsabilidade pessoal tão directa. Nesta semana, têm-na consigo — e pesada: mandar, ou não mandar, para o desemprego mais umas quantas centenas de portugueses.
Se a Assembleia da República apoiar que Portugal se oponha à cooperação reforçada na patente unitária e, assim, continuemos a bater-nos pela igualdade concorrencial e de regime linguístico, estaremos a defender não só a nossa língua, nem só a nossa economia — mas concretamente o emprego de quinhentos a mil profissionais, altamente qualificados.
Se alinhar pela traição à língua portuguesa e pela rendição aos interesses dos mais poderosos, estaremos a querer somar mais umas largas centenas aos milhares de desempregados que Portugal já leva. Acrescentaremos mais insolvências, com encerramento de empresas e escritórios. A juntar ao desastre da dívida externa e do desequilíbrio comercial, alienaremos mais uns largos milhões de euros anuais de exportação de serviços.
Se Umberto Eco tem razão quando diz que «a língua da Europa é a tradução», é aos tradutores que devemos a construção europeia. Todos os dias! Aquelas vozes anónimas que nos entram pelos auriculares nas reuniões europeias são as vozes da partilha, da interacção, do conhecimento mútuo. São esses intérpretes que nos trazem o que é dito em alemão, em finlandês, em húngaro e nos tornam inteligíveis, em português, a polacos, suecos ou cipriotas. Aqueles textos comuns europeus, que debatemos e votamos, não nos são acessíveis sem o trabalho anónimo, incessante, dos tradutores. Nem os nossos comentários, propostas e contributos chegam a qualquer outro sem eles. «A língua da Europa é a tradução».
Sem tradutores e intérpretes não há participação na Europa, não há democracia possível ou sequer arremedo dela, não há igualdade de concorrência, não há convergência, não há competitividade justa, não há convocação, não há comunidade. Porque a nossa base é multilingue, a Europa é esse multilinguismo — e não há União Europeia sem o garantir.
É, por isso, de bom tom acabar as reuniões europeias, agradecendo o trabalho de intérpretes e tradutores. Agora, deputados há, com governantes e diplomatas, a querer inaugurar nova moda: despedi-los.
O fantasma dos “custos” do multilinguismo é uma velha questão. Está provado que custa pouco — e muito pouco para os benefícios que gera. Costumo dizer que custem a tradução e a interpretação o que custarem é muito mais barato que as balas, e as bombas, e a destruição, e a guerra, e os mortos de que se fez a história da Europa antes da União Europeia.
Os tradutores e intérpretes são os soldados dessa paz, porque são a ferramenta da unidade em igualdade, da construção comum com paridade. É a tão glosada «unidade na diversidade». São os tradutores que garantem que ninguém seja excluído, que fazem da construção da cultura, da ciência e da história europeias osmose de todos e não imposição só de alguns. Quando tanto elogiamos a capacidade de estabelecer pontes, os tradutores são as pontes. Quando procuramos elos e laços, os tradutores são esses elos, os nossos laços.
O multilinguismo europeu gerou um novo ramo cultural, profissional e económico da maior importância, que ocupa milhares de pessoas, com competência, dedicação, saber, curiosidade e entusiasmo. Surgem as combinações mais improváveis de português, checo e grego, ou francês, finlandês e lituano. Tudo isso não é um passivo, mas um extraordinário activo europeu. Não é um fardo, mas riqueza extraordinária. É um capital, uma ginástica, um talento, uma aptidão dos europeus que nos habilita também a conhecer e dominar outras grandes línguas mundiais.
Claro que devemos apetrechar-nos cada vez mais em línguas estrangeiras. A modernidade é multilingue. Sustento, há muito, que os nossos sistemas de ensino devem rever o chamado «objectivo de Barcelona», subindo a meta para sermos fluentes na língua oficial e mais três línguas, em vez de apenas duas — pasmo com a Europa do século XXI ter o mesmo objectivo que a Educação Nacional de Salazar, há cinquenta anos, quando fui para a escola. Ou, olhando o lugar que a China e os chineses terão no futuro do mundo, defendo uma política portuguesa de incremento da aprendizagem da língua chinesa — se formos os europeus com mais falantes de chinês, que poderosa ferramenta económica, profissional e concorrencial isso será!
Mas saber isto não significa abdicar de direitos próprios, nem ser cúmplice de um quadro de discriminação. Não é aceitar regimes de desconstrução europeia, que abusam da cooperação reforçada para uma “Europa a retalho”. Muito menos significa renunciar ao estatuto de língua mundial do português e torpedeá-lo no seu continente de origem: a Europa.
Moderno é Lula discursar em português na Cimeira do Clima em Copenhaga. Moderno é Mourinho exibir orgulho ao receber em português o seu título mundial. Saloios, ultrapassados, são os «portugueses não-praticantes» que se inferiorizam e nos empurram para a irrelevância.
A passagem da patente europeia para a patente unitária com apenas três línguas (inglês, francês e alemão) tem sido uma longa sucessão de manobras, truques e malabarismos. Falando de inovação, como podemos alienar o potencial de inovação do português científico e tecnológico que é assegurado pela tradução das patentes? Falando de competitividade, como golpeamos a nossa competitividade empresarial?
Na crise actual, é essencial que, no momento de decidir e votar, aquela concreta responsabilidade individual seja sentida por cada deputado e deputada — e, em Bruxelas, por cada governante e diplomata.
Olhemos, cara a cara, olhos nos olhos, cada um, cada uma, daqueles tradutores, que estaremos a honrar — ou a mandar para a fila do desemprego. As nossas decisões têm consequências.
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