Vanessa Rato in Ipsílon
Tudo começou com Crepúsculo", primeiro volume de uma saga entre uma humana e um vampiro. Quatro livros, escritos por Stephenie Meyer, um filme (e agora um DVD) estão a atrair os adolescentes de todo o mundo. Nesta história de vampiros não há sexo antes do casamento. É uma visão da América do pânico pós-sida tornado discurso repressivo.
Quem era adolescente ou queria ser em finais dos anos 1980 viu: "The Lost Boys", filme que, em Portugal, acabou conhecido como "Os Rapazes da Noite" mas que deveria ter-se chamado "Os Rapazes Perdidos", incluindo a vertigem da adolescência eterna numa Terra do Nunca ao som do "pós-punk" dos Echo and The Bunnymen. À distância de duas décadas, percebe-se: em finais dos anos 1980 vaguear pela noite ou estar perdido era a mesma coisa. Em finais dos anos 1980, princípio dos anos 1990, a vida para lá do pôr-do-sol era rugosa. Aliás, a vida, em geral, era mais rugosa. Pelo menos à superfície. E as histórias de vampiros, o tipo de história de vampiros que se popularizaram no "mainstream" contemporâneo com "Os Rapazes da Noite" (1987), também.
A rebeldia sem causa, a estética "new wave" e o "punch" de uma violência "rock" à solta, sim, mas também a carnalidade barroca, mais sofisticada, sumptuosa, sofrida e sacrificial de "O Drácula de Bram Stoker" (1992), mais o homoerotismo e a sinuosidade espinhosa e amoral da tangente à pedofilia de "Entrevista com o Vampiro" (1994): o retrato de uma era após décadas de transformação, de "Nosferatu" (1922), de Murnau, e "Drácula" (1932), com Bela Lugosi, de tudo o que saiu da máquina de horror dos Estúdios Hammer, até do "slipstream" de visões como "Por Favor não Me Morda o Pescoço" (1967), de Polanski, "Phantom der Nacht" (1979), de Herzog, ou "Os Viciosos" (1995), de Abel Ferrara.
Da abjecção boçal e do mal puro dos sanguinários do folclore eslavo à figura intricada e nobre do existencialista de raiz moderna, cativo entre uma erótica do excesso e uma erótica da contenção. Várias vidas para, no século XXI, chegarmos aqui: "Luz e Escuridão", a saga bem-pensante com que uma dona de casa do Arizona, Mórmon, 35 anos, casada e com três filhos - o nome é Stephenie Meyer -, transforma a sombra de vertigem e perdição romântica do imaginário da não-morte - que é como quem diz: da não-vida - num voto de castidade pré-matrimonial. Um voto de castidade entre dois adolescentes que hão-de acabar por casar, ter filhos (pelo menos um) e talvez até viver felizes para sempre (e, sim, aqui o "para sempre" é literal).
"Luz e Escuridão" é isto. Isto e um fenómeno à escala global, com mais de 45 milhões de exemplares vendidos do que, para já, é uma tetralogia: "Crepúsculo", "Lua Nova", "Eclipse" e "Amanhecer". Em Novembro, o primeiro volume, que tinha sido lançado em 2005, deu um filme com o mesmo título, "Crepúsculo", onde Bella, adolescente insuspeita de qualquer excepcionalidade, deixa o sol e a areia quente do Arizona onde vive com a mãe pelas brumas montanhosas das florestas do estado de Washington para viver com o pai. Rapariga conhece rapaz conhece rapariga: Bella apaixona-se por um colega de liceu, Edward, o semi-inadaptado de olhar dorido, inatingível sob capas fulgurantes de silêncio e mistério. Uma produção de pouco mais de 28 milhões de euros que só nas bilheteiras já teve um retorno cem vezes superior: mais de 280 milhões de euros. Isto no cinemas. A Portugal, onde o quarto livro da série, "Amanhecer", chega a 9 de Junho, 160 mil cópias dos volumes anteriores já foram vendidas.
Vampiro, esse conservador
Há quem diga que o sucesso meteórico de Meyer é apenas comparável ao de J. K. Rowling. Precisamente: "Luz e Escuridão" está para os romances de Bram Stoker ou Anne Rice como "Harry Potter" está para "O Senhor dos Anéis" de Tolkien. O maniqueísmo, ainda que matizado, resulta: ao transformar a complexidade de uma tapeçaria moral cheia de vacilações, nuances e paradoxos num mundo a duas cores, a do Bem e a do Mal - porta aberta ao escapismo simplista. E, contudo, as versões simplistas do mundo raramente são inócuas.
"Luz e Escuridão": uma narrativa debaixo de outra, ambas cheias de ratoeiras e alçapões.
No meio do envolvimento cada vez mais próximo "ma non troppo" entre Bella e Edward - é um "fine romance with no kisses" (ou, como titulava a "Newsweek": "Nada de beijos, por favor, somos vampiros") -, a "Time" escrevia: "É esse o poder [destes livros]: são limpos à superfície, mas, mesmo abaixo, são absolutamente, deliciosamente obscenos."
A Europa e a América populares sempre tiveram noções diferentes sobre o que considerar tanto obsceno como deliciosamente obsceno. Tal como sempre tiveram noções diferentes sobre o que temer como narrativa.
Edward - há muito que tem 17 anos - renuncia ao desejo. Em todos os sentidos. Vem de um clã, os Cullen, que adoptou uma forma de vegetarianismo: alimenta-se apenas de animais. E, claro, ele não a beija - apesar de ela pedir - porque a ama demais.
A deliciosa obscenidade de que fala a "Time" virá do frémito de antecipação e impossibilidade que isso suscita numa adolescente de lábios entumescidos?
Fora do nicho do "gore", as histórias de vampiros sempre se fizeram disto, de um mundo especular em que os papéis sexuais mais estereotipados se invertem: ele deseja primeiro, mas contém-se, acabando por fazer com que seja ela a procurar a concretização. Os vampiros, tal como fixados por Bram Stoker em 1897, pleno ocaso de uma repressão vitoriana mais repleta de bordéis que qualquer outra era, são, assim, em parte, sempre femininos. Criaturas poderosas mas "incompletas", sugere alguma da literatura de análise do género, falando numa espécie de eunucos ou impotentes cujo isolamento satânico se definira também em termos sexuais; o coito substituído por um erotismo centrado na união oral, pelo prazer da penetração dos dentes na carne, o "fellatio" substituído pelo lamber de uma fina corrente de sangue sobre a pele. Talvez. Mas nunca, antes de Stephenie Meyer, os vampiros como porta-estandartes do sexo como experiência reservada ao casamento, essa instituição com pouco mais de 200 anos fora das alianças dos impérios familiares. Edward impõe e Bella acaba por aceitar o casamento como condição - um vampirismo ultraconservador: é a história da marginalidade quando apropriada pelos discursos centrais, torna-se aparentemente menos letal.
Na eternidade dos vampiros, o amor carnal sempre matou, mas a morte também nunca foi tão apetecível. Em "Luz e Escuridão" o amor carnal talvez não mate (e não mata) se for dentro do casamento: é a história da América do pânico pós-sida tornado discurso repressivo pelos poderes mais conservadores, tornado semente evangélica na forma de objecto de lazer. Ou, nas palavras de Pedro Vasconcelos, sociólogo, investigador na área da família, género, desigualdade social e sexualidade: "Os espaços culturais com maior capacidade de exportação e afirmação dos seus produtos culturais têm sempre mais capacidade de afirmação dos seus valores."
É claro, diz, que um adolescente não possui ferramentas para desconstruir os significados ocultos e os esquemas normativos subterrâneos. É por isso que não poderá chegar a perguntar-se a quem servem as categorias propostas por um objecto como "Luz e Escuridão". Porque as categorias servem sempre alguém, alguém que as cria dentro de sistemas de relação com outras categorias, aquelas tidas como centrais, aquelas que em teoria correspondem à visão da plena humanidade, transformando as restantes em desvios, "humanidades menores".
Categorias: a da mulher, por exemplo, surge como oposição à categorial universal do homem. Maio de 2009: ao andar pelas ruas, dir-se-ia estarmos a anos-luz deste tipo de narrativas mais tradicionais. Até mesmo das veiculadas pelo esquema romântico setecentista e oitocentista, fundador da ideia de individualidade e conjugalidade que guardamos até hoje, mas reinventor de uma ideia de subordinação e passividade feminina. Até que realidades como as de "Luz e Escuridão" nos recordam que elas estão sempre a voltar. "Voltam porque têm protagonistas que as produzem, protagonistas que as defendem, esquemas operativos vigentes de desigualdades que circulam e que é difícil transformar, grupos, organizações, estruturas institucionalizadas que as defendem, interessadas em que sejam dominantes porque são o que lhes dá poder" (Pedro Vasconcelos). Ou, como diz João Manuel Oliveira, também sociólogo, investigador em estudos de género e teoria feminista, voltam porque "estamos longe de uma pacificação com a sexualidade", estamos ainda numa zona de conflito, nós todos mergulhados numa guerra em que tão depressa ganham território as fileiras progressistas como, no momento seguinte, se perdem batalhas às mãos das fileiras conservadoras, fileiras compostas, por exemplo, por grupos religiosos como os Mórmon da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a que Stephenie Meyer pertence e que defende lógicas patriarcais extremas.
O valor da virgindade
O terror clássico, de raiz também oitocentista, pode ser visto sob o prisma da desordem da sexualidade feminina, do vampiro como metáfora da monstruosidade escondida no facto de a mulher procurar a satisfação do seu desejo, ultrapassando a fronteira do admissível - e sujeitando-se às consequências também monstruosas da sua transgressão. Na América do século XXI - e, portanto, no mundo globalizado dos cinemas e das livrarias - só podemos olhar para um pacto de castidade pré-matrimonial imposto por um homem a uma mulher à luz de uma era em que o conservadorismo está a adoptar novas estratégias.
Por exemplo, estima-se que desde a sua criação, em 1996, o movimento para-religioso The Silver Ring Thing, conhecido pela sigla SRT, tenha levado cerca de dois milhões de jovens a fazer votos de abstinência pré-matrimonial, glamorizando - e por isso reforçando - o valor da virgindade. Como? Apropriando-se de linguagens reconhecíveis pelos jovens: cerimónias promovidas na forma de mega-concertos "pop", tudo efeitos luminotécnicos e vídeos a alta velocidade - os jovens (o "target" são adolescentes entre os 12 e os 18 anos) fazem os seus votos lá pelo meio (ganham uma aliança de prata).
Objectivos declarados: "Produzir uma mudança na América em que a abstinência volte a tornar-se na norma, em vez da excepção"; "permitir descobrir o que a pureza realmente significa" num "mundo despedaçado" (pela hiper-sexualização, subentende-se). Um dos lemas: "Get it on" - exactamente, menos o "let's" inicial, como um dos temas mais conhecidos e sensuais de Marvin Gaye, cuja mensagem surge invertida.
Durante a era Bush - um "born-again Christian" - o SRT recebeu muitos dos 176 milhões de dólares investidos pelo governo federal americano em projectos do género numa política de (des)educação sexual apologista da abstinência. Tudo apesar de todos os estudos (o mais recente é de Dezembro, publicado pela Associação Americana de Pediatria que acompanhou dois mil jovens ao longo de cinco anos) indicarem que o incentivo à abstinência leva apenas a comportamentos de risco, como o não uso de preservativo nas relações sexuais que os jovens acabam sempre por ter, esquecendo os votos.
Na Europa: "O nosso contexto é completamente diferente, mesmo no mundo católico praticante", diz Teresa Toldy, doutora em teologia da Universidade Fernando Pessoa, do Porto. Tende-se a evitar os riscos de invocar o extremismo religioso que está na base da fundação dos EUA, mas ele faz parte da identidade norte-americana, criada a partir das franjas mais radicalizadas do protestantismo e do catolicismo europeu, puritanos - ortodoxos, luteranos, anglicanos, calvinistas, metodistas... - com uma moral estrita. Na Europa esse puritanismo foi-se suavizando. Na América "o tempo de Bush é uma prova de como essa raiz continua a ser importante", diz esta especialista, sublinhando que as posições se foram polarizando "entre o sector protestante não radical e o catolicismo aberto e um protestantismo radical com um peso político enorme, de direita".
A polarização possível na terra prometida de um "God save America" em que o nacionalismo é de cariz messiânico: "Se se diz 'estamos aqui porque Deus quis' não há nada a dizer de volta. Deus é o argumento final."
O negativo do humano
É uma América de confronto entre o racionalismo e o irracionalismo, pois. É desse atrito que emerge também a literatura de terror, indissociável de uma mentalidade moderna que reage ao positivismo, um escape irracionalista à fixação da realidade em modelos sociais sem espaço para a metafísica, o inexplicável e o inquietante. Não podendo dar a ler estas realidades às mentalidades esclarecidas a não ser através do filtro da racionalidade que tenta negar, o terror escolhe sujeitos que possam operar enquanto metáforas: "O vampiro é um desses topoi literários que consegue conservar uma enorme força metafórica, e que por isso tem sobrevivido", diz Jorge Martins Rosa, do departamento de Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e investigador na área da literatura fantástica. De modo geral, o vampiro "continua a ser um topos privilegiado para a fantasia e para o horror por ser uma entidade de fronteira, que tanto possui traços de humanidade e vida quanto de monstruosidade e desafio à mortalidade. Representa, por exemplo, a doença - a doença contagiosa, e nesta o contágio por via sexual -, ao mesmo tempo que exibe uma vitalidade sobre-humana. Representa também um certo tipo de marginalidade, nomeadamente porque essa vitalidade só pode ter lugar de forma invertida: à noite, à custa dos humanos que assim se transformam em novos vampiros": "Tal como a sensibilidade romântica se constrói como negativo do iluminismo, também o vampiro é um negativo do humano, e parece-me ser nisso que continua a residir a sua força nas artes narrativas, da literatura ao cinema, à televisão, e mesmo aos videojogos", diz.
Alexandre Melo, crítico e comissário de arte contemporânea, investigador na área da sociologia da Cultura, põe-se na pele do vampiro, o centro de "uma vertigem teórica e moral". Sabendo que o tempo é infinito, como é que um vampiro determina a sua escala de valores? Perante a eternidade, "tudo ganha uma escala tal que podemos acabar por concluir que devemos submeter-nos a um conjunto de regras muito estritas para poder controlar", diz.
Neste contexto, o que é a liberdade, sobretudo, o que é a liberdade para alguém que não pode expor livremente a sua natureza? Gestão: "O vampiro é uma personagem que só pode viver segundo regras de encenação estritas e que tendem a ser ritualizadas. Todos os seus relacionamentos passam pela encenação dos seus actos." A questão do desejo sempre em pano de fundo: "O que é importante, na invenção, na criação entre duas pessoas - porque o desejo é sempre criação - é a qualidade da narrativa que essas duas pessoas inventam uma para a outra. Aqui [na história de Bella e Edward], os dados contextuais tornaram-se suficientemente interessantes para permitir que aquelas duas pessoas inventassem uma história fora do normal."
"Luz e Escuridão" como um espaço em que infantilizamos este imaginário e, portanto, nos infantilizamos a nós, em circuito fechado? Pelo menos em "Crepúsculo", o filme, "reabilitam-se certos ideais mais líricos", diz Melo, porque "permitem abranger um público maior e mais jovem". A infantilização do cinema, em geral, faz parte de uma economia cujo motor são cada vez mais os jovens. A linguagem de "Luz e Escuridão" permite "não chocar certas zonas". É a perspectiva mais distanciada. Isso ou voltar atrás: "Os espaços culturais com maior capacidade de exportação e afirmação dos seus produtos culturais têm sempre mais capacidade de afirmação dos seus valores", valores que servem sempre alguém (Pedro Vasconcelos). Stephenie Meyer: "bite me".
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