Quando lhe falam, a si, de «habitações» num hotel ou dum «comedor» em sua casa, você sabe do que se trata? Quando lê que «os homens nunca acabarão de entender as mulheres», percebe que eles nunca o conseguirão? Quando alguém afirma «Levo gémeos», sabe logo o sexo da pessoa? Quando lê que um cão «continuava a subir as patas à prancha como para acabar de ter a certeza de que não as deveria lá pôr», você entendeu alguma coisa? Caso tudo isto o baralhe, talvez José Saramago (citou-se o romance A Caverna) não seja para si a melhor leitura. Se percebeu tudo, felicito-o pelo seu espanhol.
Isto é grave? Não, segundo opinião geral. As nossas rejeições visam o francês e, em grau menor, o inglês. Já o espanhol não nos belisca. Pelo contrário. O nosso «establishment» linguístico, sempre ferozmente antigalicista (os anglicismos apanharam-nos em fase mais tratável), escancarou as portas ao vizinho. O maior ideólogo oitocentista do idioma, Castilho, escrevia que qualquer deles, português ou castelhano, «se pode estudar pelos clássicos do outro». Camilo detestava «bagatela», preferindo-lhe... «frioleira». Hoje, uma vez por outra, alguém franze o cenho. Num “Expresso” recente, lamentava-se moderadamente o «portunhol» publicitário de certo armazém de luxo espanhol. Também sucede alguém entre nós compungir-se por usar «mescla», ou «postura», ou «enfoque». Sem razão, mas com mérito. É quase tudo.
Nenhum mecanismo mental nos alerta para castelhanismos. Claro, por falta de conhecimento. Mas também por hábito cultural. Durante séculos, o castelhano foi-nos um celeiro. Termo que nos faltasse, íamos aí buscá-lo, sem má consciência e gratos ao destino. Assim integrámos largos milhares de espanholismos. Os nossos dicionários, simpáticos, arrolam quase tudo à derivação latina e não nos fazem passar vergonhas. Até a nossa sintaxe idiomática é, muita dela, puro calque da centro-peninsular. O castelhano é «chique», e nem Aquilino Ribeiro, o grande castiço, foi esquisito. Em suma: valeu-nos o vocabulário básico e a morfologia que, com os galegos, acumuláramos, antes de o prestígio da Meseta virar a oeste.
O espanhol é-nos pacífico. Um conto de Teixeira Gomes e um romance de Carlos de Oliveira contêm tranquilos diálogos em castelhano. O título Portugués, guapo y matador, duma novela de Manuel Jorge Marmelo, não levantou ondas (nem a própria novela, aliás magnífica). Numa crónica de 1996, em correntio castelhano, Vasco Graça Moura advogou a adopção rápida do «portunhol», para sermos, na Península Ibérica, mais perceptíveis e melhores negociantes. Está visto: a nossa relação com o idioma vizinho é descomplexada e permite até o lúdico.
Como se tal não bastasse, Mourinho, Durão Barroso, Sampaio, Vitorino e Sócrates dão em espanhol um ar da sua graça. Nós, os outros, afora os poucos que o falam com donaire e louçania, abrimos a boca e as vogais e sai-nos, bons céus, castelhano. O facto de nenhum espanhol influente, exceptuados o soberano e o líder republicano catalão, dizer em português coisa que se veja, nem no-lo ocorre estranhar.
E foi assim, com estas saudáveis disposições, que viemos lendo, nos últimos dez anos, sem um ai, sem um preguear da testa, cinco romances de José Saramago que patenteiam novos, e insistentes, modismos castelhanos. Existem boas desculpas para ninguém (bom, quase ninguém) ter dado brado. Há a nossa ignorância do castelhano, há o nosso jeito descomplexado na matéria, há uma desatenção pela estilística, desaparecidos Rodrigues Lapa e Jacinto do Prado Coelho. E há um motivo interno à escrita de Saramago: o seu pendor arcaizante, iniciado em 1979 no volume Poética dos Cinco Sentidos. Ora, é sabido quanto certo castelhano nos soa arcaico – e algo do nosso idioma, também, a um espanhol. Na realidade, Saramago não fazia senão embalar-nos com ancestrais boleios, muito ibéricos, aprendidos, e bem, em Bernardes e Vieira.
Abruptamente, em 1995, as coisas mudaram de feição. Foi o ano de Ensaio sobre a Cegueira, ainda hoje tido, por muitos, como o seu melhor romance. Aí figuravam termos e expressões estranhíssimos, como «tomar terra» (por aterrar), «chamar o ministério» (por telefonar para lá), «o pago» (por a paga), «os urgidos» (por os apressados), «A saber» (por Vamos lá ver), «o último que vi» (por a última coisa que vi), «em algum caso» (por num caso ou outro), «são de preço» (por são de qualidade), «nós, que apenas vemos» (por nós, que mal vemos). E muitos «pronto» por logo, muitos «logo» por depois. E também «a gente do comum», «a porta buscada», «ir de acompanhante», «ficar de responsável», «dar lástima», «alçar a voz». E muitos «deve de ser» e numerosas inversões de sujeito e verbo. E dezenas de «não houve outro remédio que», ou variantes (um tique saramaguiano), nunca os portuguesíssimos «não houve mais remédio que», ou «não houve remédio senão».
Por questão de método, tudo isto foi retirado de um só livro, Ensaio sobre a Cegueira. Deve dizer-se que, no romance seguinte, Todos os Nomes, estes e quaisquer outros castelhanismos desapareceram. Foi sol de pouca dura. Os livros que se seguiram do entretanto nobelizado, A Caverna, O Homem Duplicado e Ensaio sobre a Lucidez, trouxeram o regresso em força desta curiosa deriva.
Em As Intermitências da Morte, o seu mais recente romance (livro, segundo Maria Alzira Seixo, «muito festejado» e «muito lido»), prosseguem altas as frequências de «lograr», de «equivocar-se», de «inteirar-se». Dão-se exclusivamente «Bons dias», «Boas tardes», «Boas noites». Atendem-se os telefones com «Diga», convida-se a falar com «Adiante», acha-se óptimo com «Estupendo», incita-se a entrar com «Passe». Em vez de «Não faltava mais nada», vê-se o castelhaníssimo «Não faltaria mais». Nunca há acontecimentos, há «sucessos». Nunca há uma contracção tipo «num», é sempre «em um». Há dezenas de «em realidade», dezenas de «cousa» e nem uma só «coisa» (vá lá, aproxima-nos da Galiza). Para cada passado com auxiliar «ter» há dez com «haver». Começam a aparecer «mui», «hemos». E diz-se agora «levar razão», «colher frio».
Isto por alto, já que haveria mais, e numerosas, questões sintácticas complexas, tipo «o bonita que te vejo», «esse fado que cumprir», «depois de que a carta de cor violeta lhe foi devolvida», enleio este a pedir um infinito pessoal. Numa palavra, as coisas vão avançando.
Há circunstâncias biográficas a explicarem isto e mais? Decerto. José Saramago escreve, como sempre escreveu, um português portentoso, mas deixou de distinguir os dois idiomas. O que espanta não é isso, é outra coisa. Ou duas. Primeiro, que nenhum revisor lhe faça reparo. E, se faz, imagine-se o manuscrito. Segundo, que nada disto pareça preocupante a ninguém ou sequer assinalável.
Aconteceu-me, por duas vezes, escrever sobre a matéria. Uma em 1995, no “Jornal de Letras” (texto recolhido em volume), outra em 2001 no “Ciberkiosk” (entretanto desactivado). Não pretendi influir no escritor, ignoro mesmo se me leu. Mas supus, modesto, que o caso fosse interessar algum concidadão mais. Nunca por tal se deu.
Não é que Saramago seja suspeito de menos amor ao idioma. E seria leviano tê-lo na conta de agente imperialista. É certo ter ele declarado: «É lógico que Portugal seja atraído pela Espanha e se integre – com um altíssimo grau de autogoverno, entenda-se – num novo Estado ibérico». Lia-se isto no “Courrier Internacional” de 20-1-2006, que o retirou de “La Vanguardia”. Mas é cenário doidivanas em demasia para tomar-se a sério. Já o idioma, ele parece disposto a defendê-lo. «Uma língua que não se defende morre», afirma num texto do Ciberdúvidas.
Seja claro: não sou anti-saramaguista. Os anti-saramaguistas são gente muito calada. De um silêncio quase tão ruidoso como a tagarelice dos saramaguianos. Parece-me, sim, premente reflectir sobre os dados em apreço.
Que Saramago continue um primoroso estilista é facto. A sua força não está na elaboração idiomática (que um Mário de Carvalho leva à vertigem), mas no inteligentíssimo explorar da expressividade disponível. António Mega Ferreira acertou ao afirmar: «Às vezes era bom recomendar a alguns escritores portugueses que lessem algumas páginas de Saramago». Mas isso só agudiza a questão. Ler o romancista transformou-se num contacto, carregado de fascínio, com larga série de estranhas inovações transfronteiriças. Eis um problema imprevisto: que fazer com este Saramago em traje de luzes.
Sem dúvida, é a funcionalidade de novos materiais, não a sua origem, o que interessa. Mas podem não ser funcionais por aí além, os novos giros saramaguianos, e antes anunciar a confusão vocabular e idiomática que, no nosso meio, um maior contacto ibérico irá estabelecer. Convirá, pois, de novo afastar-nos? Convirá, mesmo, aos portugueses não estudarem espanhol? Longe disso. Não é só o manejo de línguas que é, sempre, vantajoso. Também a absorção do castelhano pode, como no passado, trazer aumento de património.
Mas o que acabou sucedendo a Saramago é, para todos, um sério aviso. Mais depressa do que suporíamos, um idioma já prestigioso acabará por envolver-nos e falar em nós com espantosa, ou assustadora, naturalidade. Haverá mecanismos impeditivos e pelo menos de gestão? Talvez, e importará encontrá-los. Uma coisa é certa: o pior que poderíamos fazer era encolher os ombros, porque a onda há-de passar. Não, a onda vem aí.
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