Joana Gorjão Henriques para o Público:
O Chafariz d’El Rey no século XVI (autor desconhecido)
Portugal deve pagar indemnizações pela escravatura?
É um tema que tem vindo a debate regularmente, mas de que pouco se fala em Portugal. Devem os países que participaram na escravatura pagar indemnizações? Quem o deve fazer, quem deve ser indemnizado?
Em Maio, a organização Comunidade das Caraíbas (Caricom) reuniu-se na conferência da Comissão de Compensações/Reparações e incluiu Portugal na lista dos países europeus aos quais querem exigir indemnizações. Chegaram, na altura, a um programa de dez pontos que consideram essenciais para o processo de reparações: passa pelo pedido de desculpas formal, apoio ao repatriamento para África, criação de programas de desenvolvimento para indígenas, criação de instituições culturais, erradicação da iliteracia ou cancelamento das dívidas dos países africanos.
Há três semanas, a Caricom voltou a reunir-se em Antígua e Barbuda numa segunda edição da conferência e voltou a fazer as mesmas reivindicações. As negociações continuam e estão agora nas mãos do comité liderado pelo primeiro-ministro de Barbados, Hon Frendel Sturat, diz Verene Shepherd, presidente da Comissão Nacional para as Reparações da Jamaica e uma das três vice-presidentes da Comissão de Compensações.
Apesar de estar incluído na lista, Portugal ainda não terá tido uma abordagem formal da parte da Caricom, pelo menos que Shepherd saiba. Os países da Caricom são Antígua e Barbuda, Baamas, Barbados, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Montserrat, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname e Trindade e Tobago. Além de Portugal, são pedidas indemnizações a Espanha, Reino Unido, França, Holanda, Dinamarca ou Suécia.
O próximo passo da Caricom será o envio de uma carta aos governos destes países europeus e uma terceira conferência com a Universidade de Essex em data a definir, mas que esperam ser em 2015, revela Shepherd. Assim, a reivindicação não vai ficar por aqui. “A escravatura e o comércio de escravos foram um crime contra a humanidade”, diz a também professora de História Social, por email. “Houve uma política de genocídio deliberado contra os indígenas das Caraíbas. Aqueles que cometeram crimes contra a humanidade ou que se envolveram em actos de genocídio devem primeiro pedir desculpas e depois integrar um programa de justiça reparatória. Não há limite estatutário para um crime contra a humanidade e portanto os países europeus colonizadores nas Caraíbas e na América Latina devem responder por isso. A reparação é uma questão de justiça.”
Nesta resposta, Shepherd aborda vários pontos polémicos que têm provocado acesos debates entre quem defende e quem é contra as reparações: é a escravatura um crime contra a humanidade? Pode ser considerada genocídio? Devem os governantes dos países comerciantes de escravos pagar hoje por um crime cometido até há dois séculos? O que há a reparar e como?
“No mínimo, aquilo de que precisamos é de maior transparência sobre quem beneficiou da escravatura e quanto”, diz o economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller O Capital no Século XXI, numa curta resposta por email à Revista 2. “Isto implica a abertura dos arquivos públicos e privados e a criação de museus”, acrescenta.
Piketty, que em 2013 escreveu sobre a escravatura na sua coluna de opinião no Libération, defendendo “uma reparação pela transparência”, é a favor, “em alguns casos”, das “reparações directas e da transferência de bens”, esclarece à 2. Por exemplo, através da “reforma agrária em algumas antigas ilhas escravas como Reunião, Martinica ou Guadalupe, no caso francês”, ilhas que têm altos níveis de “desigualdade entre descendentes de escravos e descendentes de donos de escravos”. “A dimensão destes casos ainda está por saber”, conclui o perito em concentração e distribuição de riqueza.
Quanto renderam e valiam os 12 milhões de escravos que se calcula terem atravessado o Atlântico não se sabe. Mas há dados sobre as indemnizações “ao contrário”, como o valor pago pelo Estado britânico aos donos de escravos, quando a Inglaterra aboliu a escravatura em 1833: 20 milhões de libras (25,5 milhões de euros).
Isto é um dado relevante para uma discussão sobre as compensações, sublinha o britânico Nick Draper, autor de livros como Slave Compensation Records, The Price of Emancipation: Slave-Ownership, Compensation, Capitalism and Slave Ownership, ou British Society at the End of Slavery. “Mostra que os donos de escravos foram indemnizados, enquanto os escravos não receberam nada — hoje podemos dizer que a indemnização foi para as pessoas erradas.” Nick Draper é um dos investigadores associados do projecto Legacies of British Slave-Ownership, da University City of London, que disponibiliza online uma base de dados dos britânicos envolvidos no comércio de escravos — mas não toma posição sobre o tema das compensações. “Esses 20 milhões representavam entre 40% e 45% do valor das pessoas escravizadas”, acrescenta. Quanto vale isso hoje? “Depende do que se mede na inflação, qual o preço do pão agora e qual o preço do pão na altura: os 20 milhões da altura equivalem a 1,6/1,7 mil milhões de libras hoje. Se pensarmos em termos de salários e da média, esse número é dez vezes mais — seria 16/17 mil milhões de libras. E se pensarmos em termos de PIB e dívida pública os números ainda aumentam mais.”
Ser a favor ou não das reparações é uma questão que não tem uma resposta directa, nem simples. “O mundo hoje reflecte o que fizemos colectivamente como europeus há 200 anos, e uma das coisas que fizemos foi contribuir para o não desenvolvimento das Caraíbas”, reconhece Draper. “Sinto vontade de voltar atrás e tentar abordar algumas das heranças da escravatura? Claro. O programa da Caricom é sobre transferência de pagamentos da Europa para as Caraíbas. Não lida com a questão das diásporas no resto do mundo. A questão de como é extraordinariamente difícil, mas ainda nem estamos lá — estamos a debater o princípio. O resto é detalhe.”
Independentemente de tudo, o primeiro passo deve ser o reconhecimento da história britânica, acrescenta. “A identidade britânica está muito ligada à abolição e isso é importante, mas tende a minimizar a escravatura e o comércio de escravos. Os primeiros passos no Reino Unido são reconhecer, colectivamente, que a nossa história é marcada pela abolição, mas também pela escravatura.”
Em 2009, um parque de estacionamento estava a ser construído em Lagos, junto à Cerca Nova, no Vale da Gafaria, quando foram encontrados 150 esqueletos. Tratava-se de um cemitério de escravos africanos do século XV, o mais antigo conhecido no mundo e o único na Europa, segundo peritos.
Com a descoberta, o Comité Português do projecto UNESCO A Rota do Escravo propôs a criação do Museu da Escravatura, já que este achado “impunha uma atenção e uma preservação adequada do sítio”. Foi desenhado um pré-projecto de museu, com três núcleos — o mercado do escravo, um memorial no local do cemitério e um centro de estudos sobre a escravatura —, aprovado pela autarquia em 2011. Hoje, no local está um minigolfe, uma obra que teve parecer favorável do Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) em Dezembro de 2011, segundo a Câmara Municipal de Lagos. Diz a vereadora da câmara Fernanda Afonso que “o executivo continua determinado a projectar toda a temática que envolve a descoberta do cemitério, bem como o Museu da Escravatura”. Mas para Isabel Castro Henriques, historiadora especialista em escravatura, e presidente do comité, se a autarquia se tem preocupado com o museu, “já no caso do cemitério parece interessar -se mais por preservar o parking e o minigolfe”.
Isabel Castro Henriques conta este episódio para ilustrar o desinteresse que existe em Portugal pelo tema da escravatura, algo que começa no poder público. Se um achado arqueológico desta importância não gera interesse, então falar de reparações é um tema ainda mais obscuro. “A escravatura não é considerada uma questão que interesse à sociedade. Continua a haver uma desvalorização dos africanos”, diz.
Porque é que não houve em Portugal um debate sério e aprofundado sobre o envolvimento do país no tráfico de escravos e na escravatura?, pergunta o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, que nota uma “reserva colectiva em abordar inúmeros aspectos relativos ao nosso passado colonial”, aos quais chama “lutos inacabados”, que têm sido sujeitos a todo o tipo de mistificações.
Dá como exemplo negligenciar-se o facto de não terem existido movimentos abolicionistas “com um mínimo de importância” no Portugal de 1800, e ignorar-se, sobretudo fora da academia, a existência da escravatura e de “condições análogas à escravatura” no “terceiro império colonial português” (1822-1975). O trabalho forçado só é legalmente abolido em 1962, diz. “Do mesmo modo, a história do envolvimento do Estado português no tráfico de escravos e na escravatura é um assunto relativamente ocultado.”
Por outro lado, como lembra Isabel Castro Henriques, é comum referir-se que Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura, pois o Marquês de Pombal, em 1761, decreta-a, mas “fá-lo para evitar que os escravos venham para Portugal, sendo desviados do Brasil, onde são essenciais ao desenvolvimento económico”.
Este não é um tema de debate, porque continua a predominar um olhar luso-tropicalista, um discurso oficial atenuante, analisa Rui Estrela, activista da Plataforma Gueto, uma associação contra o racismo e racismo institucional. Licenciado em Ciência Política, diz: “Portugal foi o primeiro país a levar a cabo esta engenharia financeira — porque as pessoas foram tratadas como activos financeiros — e é o único país onde não se debate esta questão.”
Se em Portugal o debate não existe fora da academia, nos países colonizados e emissores de escravos comercializados por Portugal o tema também não tem estado em cima da mesa. Miguel Bandeira Jerónimo lembra as palavras do representante angolano Georges Chikoti (hoje ministro das Relações Exteriores) na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas em Durban, em 2001, como um marco, ao dizer que era “necessário que a conferência identificasse a escravatura como crime contra a humanidade e que reparações têm de ser feitas às vítimas dessa tragédia”. O envolvimento dos portugueses, os “pioneiros do tráfico transatlântico de escravos”, devia ser notado, acrescentou.
Esta não é, porém, uma posição consensual. Em Luanda há o Museu Nacional da Escravatura desde os anos 1970, situado numa capela do século XVII onde se baptizavam os escravos antes de embarcarem. O historiador angolano Patrício Batsikama refere-o para dizer que serve de memória aos escravos que partiram de Angola. Porém, há muito por saber no estudo da escravatura, que “ainda não é exaustivo”, há apenas “algumas teses pouco sólidas para especificar a desumanização do angolano fora de Angola”.
Esse conhecimento é essencial antes de se “pensar no que se deve reparar”, defende, por telefone. “Se colocarmos na cabeça que alguém tem de reparar, estamos a sofrer um complexo de inferioridade.” O autor de O Reino do Kôngo e a Sua Origem Meridional defende que “talvez” as reparações devam começar pelos museus internacionais no Reino Unido, Portugal, Estados Unidos devolveram as peças “que foram roubadas” a países africanos como Angola. “Não é a minha geração nem a geração vindoura que vai saber o que de facto foi estragado com os escravos angolanos e que é preciso reparar.”
A partir da instituição que dirige, a Escola Portuguesa em São Tomé, e com o som do recreio como barulho de fundo, a historiadora Isaura Carvalho diz-nos ao telefone que “não faz sentido pedir reparações a estas gerações, cujos dirigentes não participaram directamente” na escravatura. “Há coisas que são irreparáveis: pior do que os danos materiais foram os danos a nível da nossa auto-estima, das mentalidades e da capacidade de decidirmos por nós”, acrescenta.
Isaura Carvalho lembra que a seguir à escravatura veio o domínio colonial, ou seja, foram séculos em que o povo são-tomense foi impedido de pensar, de ser livre, de decidir, e isso é algo interiorizado, que passa de geração em geração. “Ainda hoje há dificuldade de dirigentes africanos se afirmarem junto de dirigentes europeus. São conhecidos pelos corruptos que não gerem bem as finanças e não conseguem tomar em mãos as decisões do país, que continuam a depender do exterior.” Resume, partilhando um ponto de vista parecido com o de Batsikama, que a reparação, “nos moldes em que tem estado a ser vista, cria mais uma forma de dependência”. “Porque vamos continuar a depender desses países para resolver os nossos problemas. [É dizer]: ‘Okay, eles estiveram a explorar-nos durante anos, eles que tratem de nós.’ E voltamos à menoridade. Sabemos que estamos a sofrer as consequências do passado, mas temos que ter uma outra atitude. Se continuarmos com o discurso dos coitadinhos, não vamos lá, é uma boa facada na nossa auto-estima outra vez.”
O historiador Luís António Covane, que foi vice-ministro da Cultura (2000-2004), vice-ministro da Educação e Cultura (2005-2009) e é reitor da Universidade Nachingwea desde 2011 (uma instituição privada da Frelimo), lembra que no estudo da história de Moçambique se classifica a exploração mercantil portuguesa em três fases: a fase do ouro, a do marfim e a dos escravos. “A nossa escravatura culminou com um processo de colonização e, em vez de se mandarem as pessoas para fora, elas passaram a ser exploradas dentro do seu próprio território: o trabalho forçado e outro tipo de escravatura interna, pessoas que trabalhavam sem salário, violência das exportações de pessoas para as plantações, para as minas de ouro e diamante na África do Sul e principalmente aqui dentro.” O sistema colonial português, principalmente durante a fase do fascismo e do nacionalismo económico que impôs medidas para a produção de matérias-primas nas colónias, foi alimentado com este esquema, acrescenta.
Pensar em reparações exige fazer contas. E estas, diz, “serão as contas mais difíceis que a humanidade será obrigada a fazer”: “Quanto custa uma vida? Quanto custa uma grávida? Quanto custa um homem que era chefe do seu povo e foi exportado? Abrangeu imperadores, príncipes, rainhas, soldados, generais que foram deportados de forma indiscriminada. Estas contas entram naquela página que são os erros cometidos no passado e devemos fazer tudo para que não se repita.”
As contas seriam difíceis de fazer também por uma questão territorial, lembra o historiador guineense a viver em Portugal Julião Sousa. “Não creio que haja lugar a indemnização de ninguém: a Guiné era uma grande extensão de território que foi variando ao longo do tempo, não tinha limites definidos. Se houvesse uma indemnização, Portugal iria entregar isso a quem? Os países que existem agora ao longo da costa africana não existiam enquanto países com fronteira definida… Teria de pagar a quem? À Guiné actual? E o Mali? E o Gana? E o Senegal?”
Com uma realidade diferente de países como a Guiné onde já existia uma população residente, Cabo Verde foi sendo habitado por população trazida de outros países africanos e por portugueses brancos. André Corsino Tolentino, embaixador cabo-verdiano, sublinha que “a escravatura se deu de forma diferente” neste arquipélago. “Em 1466 houve os primeiros núcleos destinados à América do Sul e Central. Eram iniciados em Cabo Verde até para acrescentar valor comercial. O escravo boçal, considerado inferior, era usado para ser ladinizado — ou seja, para ensinar a cultura ocidental, fazer a conversão à religião católica, ensinar as artes de servir. Um escravo ladino valia mais do que um escravo boçal. Depois de iniciado em actividades agrícolas, artesanais, etc., o escravo continua a ser exportado e reexportado para o Brasil e Caraíbas.”
Mas Tolentino toca num ponto polémico que é usado por quem é contra as reparações: o facto de os próprios africanos terem participado no comércio de escravos. Diz: “Os escravocratas foram nacionais e estrangeiros.”
É Miguel Bandeira Jerónimo quem recorda a posição do académico afro-americano de Harvard Henry Gates num artigo escrito em 2010 para o New York Times, sustentada nos trabalhos dos historiadores John Thornton e Linda Heywood (centrados na história colonial, sobretudo relativa ao Congo e a Angola): só uma “complexa cooperação comercial entre elites africanas e comerciantes e agentes comerciais europeus” permitiu o tráfico transatlântico de escravos com a dimensão que teve. Uma teoria que Henry Gates continua a defender, cinco anos depois, como disse à Revista 2 por email. Bandeira Jerónimo comenta: “Esta é uma ‘verdade triste’ [expressão de Gates] que agrada pouco a cada um dos lados da barricada. Mais, torna a resposta prática à questão das reparações incómoda. Face ao que sabemos com rigor, quem deve pagar?”
O americano Ron Daniels, do Institute of the Black World 21st Century (IBW), responde indirectamente a Gates, por telefone: “A questão é: quem iniciou e quem beneficiou? Não foram os africanos.” Rui Estrela defende que a participação dos africanos não retira o cunho racial à questão. “É como discutir se um polícia negro pode ser racista — sim, pode. Esse foi, aliás, o trabalho de Frantz Fanon sobre as mentalidades coloniais, sobre quanto tempo depois perdura a mentalidade servilista e colonialista.”
Em casos como o Brasil, por exemplo, a questão das reparações torna-se mais complexa, como faz notar a historiadora Ana Lúcia Araújo, professora na Howard University, em Washington: “Seria complicado pedir a Portugal e não ao Brasil, porque sabemos que os brasileiros nascidos no Brasil estavam envolvidos no tráfico atlântico de escravos desde o começo — então Portugal e Brasil eram parte da mesma questão.”
O que tem existido no Brasil são várias iniciativas “com intento de reparar as atrocidades [vividas] na escravatura”, como as medidas de acção afirmativas. “No Brasil, mais de metade da população é afro-descendente, mais de 100 milhões de habitantes, e a única maneira de reparar os erros do passado é através do aprofundamento de medidas que já estão sendo desenvolvidas”, como as acções afirmativas, com cotas raciais nas universidades. “A escravidão durou praticamente 400 anos no Brasil, todas as esferas da sociedade estavam envolvidas. Fica difícil: para quem pedir e quem deve receber?”
Isabel Castro Henriques lembra que dar reparações financeiras implicava “ir a todos os países de onde eram originários os negreiros”. “E não estou a desculpabilizar os portugueses de quem sou muito crítica e que não têm feito nada.” “Mas como identificá-los? E todos os outros crimes praticados ao longo da história ?”
Apesar de não estarem directamente no programa de dez pontos, as compensações financeiras têm sido referidas em algumas reivindicações. Em 1999, a Comissão Africana Mundial para as Reparações e Repatriamento exigia que o Ocidente pagasse cerca de 777 triliões de dólares a África.
Argumentos: a desigualdade entre países africanos e caraíbas, por um lado, e ocidentais, por outro, e os diferentes níveis de desenvolvimento são consequência da escravatura. Nos Estados Unidos, o debate já foi mais aceso, mas quem advoga reparações refere igualmente as desigualdades sociais entre brancos e afro-americanos e a necessidade de compensar as comunidades negras no país. É o caso de Adjoa A. Aiyetoro, activista, jurista, professora na University of Arkansas, que escreveu um artigo em que considera que as reparações aos afro-descendentes americanos são essenciais à democracia. “Continua a existir discriminação até hoje”, diz-nos ao telefone. Aiyetoro, que fez parte da National Coalition of Blacks for Reparations in America, explica ainda que para colocar as vozes dos afro-americanos ao mesmo nível das dos outros americanos é preciso reparar. “As nossas vozes têm sido marginalizadas de inúmeras maneiras, desde o emprego à educação até à prisão.”
Integrado numa série que se pode traduzir como Descolonizar a Mente, 20 Questions and Answers about Reparations for Colonialism, o novo livro do activista holandês Sandrew Hira, director do International Institute for Scientific Research, faz um cálculo do valor das reparações que os países colonizadores deveriam pagar pela escravatura e pelo colonialismo. Dá um número esmagador: “O total seria 10 mil vezes o PIB de todos os países europeus, 30 triliões de dólares vezes 10 mil.”
Os cálculos são feitos a partir da área dos continentes colonizados, do período de colonização, do ouro extraído das Américas, do número de escravos trazidos para as Américas, das estimativas da população indígena, do número de nascimentos, do valor à hora para seis dias de trabalho. “O impacto do colonialismo é gigante”, diz, por telefone a partir da Holanda. “Os países europeus não podem pagar isto, mas podem pensar na forma como lidam com o colonialismo. Idealmente, um dia atingem o nível de civismo dos alemães, que tiveram a atitude de dar uma indemnização às vítimas do Holocausto.” “[Foram] 70 mil milhões de dólares até agora, sem qualquer lei, pagos por uma questão de moralidade, de justiça.”
No seu livro, Sandrew Hira construiu uma série de argumentos que desmontam as críticas às reparações. O mais usado é que a escravatura e o colonialismo aconteceram há muito tempo. “O meu contra-argumento é que se trata de uma questão de herança. Se o seu bisavô roubou a minha casa, a minha terra, o meu carro e se hoje nos conhecermos, o que é que vamos dizer um ao outro?” Outro argumento é que quem deve pagar a indemnização deve ser quem cometeu o crime. “Nos Estados Unidos a Al-Qaeda cometeu o crime do 11 de Setembro — foram os contribuintes americanos que pagaram reparações às famílias das vítimas e às companhias aéreas. Na Europa, as pessoas aceitam que, se abrirmos um negócio na propriedade de alguém, se deve pagar algo — os colonialistas europeus abriram muitos negócios nas terras dos colonizados sem pagar renda. Se alguém trabalha para si, deve ser remunerado por isso. Os países colonizadores puseram as pessoas a trabalhar e, não tendo pago por isso, têm hoje uma dívida para com os seus descendentes. Se for ao supermercado, paga pelo que leva, os colonizadores chegaram aos países colonizados e levaram coisas sem pagar.”
A quem pagar é sempre a questão que se coloca sobre as reparações. Hira sugere que se olhe para o modelo judeu. “No caso do colonialismo, pode começar-se a negociar com o Estado e com as organizações. Em Israel, além de dinheiro, houve também apoio a infra-estruturas, bens que vieram da Alemanha, há uma cadeia de apoios até agora e é uma questão de montar a estrutura para isso. O dinheiro foi também usado para programas que ensinavam aos alemães por que se deviam fazer reparações.”
Vantagens? “O Holocausto é considerado um crime contra a humanidade. Toda a gente no mundo sabe e leu sobre o Holocausto. No caso da escravatura a memória foi enterrada e há um silêncio em relação ao Holocausto dos negros.” A questão, para Hira, é que na Europa “ainda existe a ideia de que se fizeram muito boas coisas com o colonialismo, em vez de se assumir que foi um crime”.
Autor de várias obras sobre escravatura, João Pedro Marques descreveu como em Portugal persistiu uma forte corrente toleracionista da escravatura e uma ausência de abolicionistas, pois “temia-se geralmente que ela lesasse os interesses nacionais e equivalesse à perda das colónias”. Existia também complacência social em relação aos implicados na escravatura ilegal. “Mesmo na década de 1840, quando os governos se esforçavam por acompanhar o ritmo do abolicionismo britânico, vários indivíduos reconhecidamente implicados no comércio negreiro receberam recompensas do poder central”, escreveu.
Mas João Pedro Marques “é completamente contra a ideia de reparações” pela escravatura. “A história é um tecido enorme de injustiças e horrores, [só que] não podemos aplicar retrospectivamente os nossos conceitos a épocas distanciadas de 200, 300, 400 anos”, diz à Revista 2. “Não faz qualquer sentido julgar, criminalizar ou pedir indemnizações de coisas que não eram entendidas como crimes. Se fingimos que somos Deus e começamos a aplicar ao passado as nossas próprias ideias, onde é que a gente pára? Então, temos de nos começar a indemnizar todos uns aos outros. Imagine que resolvemos pedir uma indemnização aos franceses pelas invasões. Podemos dizer que foi por causa das invasões napoleónicas que a corte teve de fugir para o Brasil, etc., etc., até chegarmos à troika.”
Algo completamente diferente das reparações aos judeus, defende, porque os crimes nazis eram vistos como crimes, quando foram cometidos, “enquanto aquilo que se passou com os escravos não era entendido como crime em parte nenhuma do mundo, nem na América, na Europa, em África”. Louis-Georges Tin contra-argumenta: “As pessoas que eram escravizadas consideravam-no um crime… Mais uma vez, quando se diz isso, está a dizer-se que os africanos na altura não eram seres humanos, não tinham importância e o que eles dizem não tem importância. Até entre europeus era considerado um crime; em França no século XIII, havia uma lei que dizia que a terra do reino não podia ter escravos.”
Porém, João Pedro Marques defende: a ideia de abolir a escravidão de forma universal é ocidental e foram os ocidentais “que pagaram para acabar com a escravidão”.
Foi no Congresso de Viena, em 1815, que o comércio de escravos foi condenado. Em 1836 é abolido o comércio em Portugal, mas o tráfico continua clandestinamente. Na década de 1850, Sá da Bandeira decretou a abolição da escravatura e estabeleceu um prazo de 20 anos até que os libertados fossem efectivamente livres. “E portanto passaram de escravos a libertos e continuaram a trabalhar para os mesmos senhores. Só ao fim de 20 anos se tornaram livres”, contextualiza. O fim oficial da escravatura é em 1878.
Ao contrário de no Reino Unido, em Portugal não existiu qualquer indemnização. Desde 1500 que há uma consciência do crime da escravatura e isto está registado por vários estudiosos, defende, por seu lado, Rui Estrela. É com convicção que diz ser preciso discutir a legalidade do termo jurídico reparação — e “assumir que houve uma acção criminosa, é preciso pôr isto nos livros de História”. A palavra “genocídio” ou “negrocídio” deve ser usada para falar da escravatura e do comércio de escravos, afirma.
A verdade é que hoje há uma hierarquia racial herdeira do sistema esclavagista que se reflecte na hierarquia social, nota Estrela: em Portugal, a maioria das pessoas que saíram dos países colonizados por Portugal vive em guetos. “Com as questões do racismo e do racismo institucional, há uma certa continuidade. Há toda uma psicologia herdeira do sistema colonial e temos de assumi-la e travá-la. Discutir a reparação vai obrigar a discutir uma série de temas relacionados com o que Portugal é agora e com o que quer ser.”
Nascido no Haiti, o activista Louis-Georges Tin, presidente do Conseil Représentatif des Associations Noires de France (CRAN), explica que, “quando um crime é cometido, deve existir reparação” e a História tem inúmeros exemplos disso: “Muitas reparações aconteceram depois da I e II guerra mundiais; os nativos americanos tiveram reparações para o genocídio que é mais antigo do que a escravatura; o Quénia teve reparações do Reino Unido pelos mau-mau. Não há prescrição para um crime contra a humanidade e este é um exemplo.”
Por isso, primeiro devia ser feito um pedido de desculpas formal, depois devia haver indemnização para ajudar a reparar e, finalmente, quando a justiça for feita, pode existir reconciliação, afirma Ron Daniels. Quem pagaria? Nos Estados Unidos, os governos, instituições e empresas que estiveram envolvidas na escravatura. Quem recebe? “Com os afro-americanos é difícil, mas temos defendido que não interessa uma compensação individual mas a um grupo — por exemplo, um fundo para ser usado em instituições de Educação, de Saúde ou noutra estrutura comunitária.”
Embora não concorde com as reparações financeiras, Isabel Castro Henriques advoga manifestações públicas que mostrem uma consciência europeia sobre a natureza e dimensão da escravatura e do tráfico negreiro — por exemplo, acções pedagógicas, homenagens, memoriais. A criação de debates, produção cultural, tudo o que possa eliminar o que chama “silêncios envergonhados” e contribuir para “a assunção dos erros cometidos, o reconhecimento do preconceito e do racismo” seriam iniciativas a desenvolver.
Já Rui Estrela defende que parte da cooperação internacional — “que é tratada como filantropia, humanismo, solidariedade” — “poderia ser tratada como reparação jurídica”.
É também de cooperação, mas com um propósito oposto, que fala o embaixador Corsino, ao considerar que a questão das reparações deveria ser colocada “no plano da cooperação/colaboração e não da reivindicação”. Por outro lado, “uma coisa com custo zero, mas que teria um impacto simbólico muito grande seria Portugal, Grã-Bretanha, ou Bélgica, etc., reconhecer que esvaziar a região africana ou transportar os escravos do continente africano provocou os prejuízos tais e tais”.
De qualquer modo, a questão das reparações deve ser debatida, declara convictamente Rui Estrela. É verdade que em Portugal não têm aparecido, até agora, movimentos que reivindiquem activamente as reparações. O activista não sabe explicar porquê. Na geração anterior, diz, dos seus avós, o discurso “era muito feito para a questão da independência”. “Só agora, passado o capítulo da descolonização, é que há a questão de eu nascer em Portugal e de haver uma comunidade nascida em Portugal, amadurecida, com sentido de comunidade africana ou de afro-descendentes.”
Sandrew Hira e Louis-Georges Tin referem que mais cedo ou mais tarde este tema será colocado em cima da mesa dos países europeus. “Pagar as reparações custa dinheiro, mas não pagar vai custar ainda mais — muitos países africanos dizem que não querem fazer negócios com países que nos negam justiça”, diz Tin. Sandrew Hira conclui: “Os portugueses podem esperar que o tema apareça ou podem fazer como os alemães e pensar na questão da moralidade. Comecem a debater a história do colonialismo, porque senão os fantasmas irão perseguir-vos quando menos esperarem.”
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