01 novembro 2009

Projecto Postais Ilustrados





Bilhetes-postais: pedaços de vida

 

Quem não guarda nas gavetas das recordações, ou entalados nos livros a servir de marcadores, uns quantos postais que comprou em viagem ou que alguém enviou com uma mensagem feliz e descontraída a partir de um qualquer paraíso terrestre? Mesmo os praticantes fervorosos dos sms, dos twitter e demais ofertas electrónicas, que em tempo real fazem chegar a mensagem ao destinatário, já se viram tentados a meter na bagagem postais da Torre Eiffel, do Big Ben, do Bom Jesus de Braga, das paisagens idílicas das Bermudas ou das praias algarvias. A compra da imagem de um monumento ou paisagem do local em que nos encontramos tem um sabor especial. Pode guardá-la para recordação ou enviá-la por correio com uma mensagem breve, partilhando assim um sentimento fugaz e único com alguém que está longe. Um misto de sensações que nos estão vedadas pela parafernália electrónica. Porque será?
Temos de admitir, porém, que vão longe os tempos em que numa viagem não se dispensava o envio de meia dúzia de postais aos mais íntimos. Constituía quase uma obrigação. Era ocasião não só para partilhar um momento feliz, mas também de o viajante dar notícias sobre a sua saúde. As chamadas telefónicas eram caras, sobretudo quando feitas a partir de hotéis, e o postal era o meio mais económico de dizer «estou aqui, estou vivo, estou bem». Nos últimos anos, essa função foi transferida para os sms, os e-cards ou para as simples chamadas por telemóvel. Os e-cards, ou postais electrónicos, constituem, aliás, sucedâneos directos dos velhos cartões, a ponto de preservarem o formato, com o verso e o reverso tradicionais estendidos no ecrã. É como se deixassem de o ser se não absorvessem a configuração peculiar do postal. Mas mesmo com todas estas ofertas ao alcance de um pequeno gesto, não abandonámos de vez a relação física e íntima com o postal ilustrado de cartão. Dificilmente prescindimos dele. Mais uma vez, porque será?
Uma equipa multidisciplinar do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS/UM), coordenada por Moisés Martins, tenta responder a estas e a muitas outras interrogações relacionadas com a história, as funções e os significados dos postais ilustrados, através de um projecto de investigação intitulado «Os Postais Ilustrados. Para Uma Sociossemiótica da Imagem e do Imaginário». Considerando-os fundamentais para a compreensão e reapreciação dos media tradicionais, os investigadores têm vindo a retirar os postais do lugar marginal a que estiveram votados para afirmar a sua importância histórica, sociológica e cultural e evidenciar as relações estreitas com a imprensa escrita e audiovisual.
Após o seu aparecimento, em meados do século XIX, os postais ilustrados atravessaram os tempos, cumprindo a sua tarefa, seja nas formas mais íntimas de comunicação interpessoal seja como instrumento de promoção turística e de publicidade. Nestes múltiplos papéis, o postal pode ter sido destronado, mas não foi vencido e ressurge na actualidade com um novo vigor, associado a formas mais particulares e locais de comunicar – os chamados nichos de mercado – sobretudo no que se refere à publicidade. Alguma coisa lhes confere tanta resistência, sem dúvida. Os vários estudos, uns concluídos outros em curso, desenvolvidos por esta equipa da UM – e para os quais conta com o apoio de coleccionadores privados – dão-nos várias achegas.
Um pedaço deste lugar
Os postais ilustrados constituem, na sua essência, um repositório da memória individual e colectiva dos povos, sintetizam à nm a investigadora em Ciências da Comunicação Helena Pires e o geógrafo Miguel Bandeira, dois elementos do grupo de investigação que tem vindo a recolher e a analisar postais representativos de quatro regiões de Portugal – Viana do Castelo/Braga, Bragança, Viseu e Portalegre – e relativos ao período compreendido entre 1860 (época em que se deu o início à comercialização de cartões ilustrados) e a actualidade.
Dificilmente conseguimos verbalizar as razões por que cedemos ainda hoje à compra de postais quando temos ao alcance de um pequeno gesto outros mecanismos mais actuais e eficazes. É como se aquele rectângulo de cartão que retrata uma paisagem ou um monumento se afigurasse como um pedaço do espaço e até do tempo que estamos a usufruir. Um simples apontamento, nas palavras de Helena Pires, «de uma experiência que pode ser pessoal, íntima, até mesmo do foro amoroso, para dizer “eu estive aqui”». Nada que uma fotografia tirada com a nossa máquina possa representar, acrescenta Miguel Bandeira. O postal, enquanto «cadinho da terra» que pisamos, é «arrancado de lá», possui uma dimensão táctil, um peso, uma textura que faz dele «um elo de ligação material com o território e a vivência que acabámos de ter e que irá perdurar».
Mas o postal emerge, igualmente, como um registo da memória colectiva. Limpo dos «ruídos» do quotidiano (tráfego, estaleiros de obras, pessoas…) e fixando apenas imagens desnudadas, quase sempre assépticas, insistentemente intemporais e fossilizadas – em tudo preparadas para atravessarem o tempo, incólumes –, o cartão oferece-nos um retrato intacto da paisagem que queremos guardar ou partilhar. Mais: ao apresentar-se como o testemunho perfeito da memória e do imaginário de um lugar, os cartões suscitam-nos ainda «sentimentos de identificação» com uma comunidade mais vasta de gente que connosco comunga a mesma empatia e o gosto por aquelas imagens simbólicas. «E porque é simbólico, faz-nos sentir parte de uma cultura comum», observa Helena Pires. Geógrafo de formação, Miguel Bandeira esclarece, porém, que apesar da tendência clara para a «fossilização» dos espaços e dos objectos retratados, os postais ilustrados não deixaram de registar as transformações que se vão operando a nível do território e do planeamento. «O postal não se fica só pelo registo do património histórico. Vai também dando conta de uma cidade e de um espaço que se vão modernizando.»
Retratos de um povo feliz
Por entre a diversidade de olhares que estes pequenos objectos de papel oferecem, há um que tem vindo a merecer especial interesse por parte dos investigadores, o dos postais ilustrados enquanto «suportes da construção e da afirmação social da identidade» dos povos. Caso exemplar é o da colecção de postais produzidos no âmbito da Exposição do Mundo Português, que decorreu em 1940, em Lisboa, em pleno Estado Novo, o maior evento realizado até à Expo’98, com vista a assinalar a fundação do Estado português (1140) e a restauração da independência (1640). Os investigadores verificaram que eles foram usados exaustivamente pelo regime de Salazar como instrumento de propaganda política e de difusão de uma imagem idealizada de Portugal e do seu colonialismo. Inseridos num processo meticuloso de construção de identidade nacional, os retratos que ilustraram a mostra constituíram oportunidades valiosas para celebrar e apelar à exaltação da pátria, bem como exibir as figuras mais nobres dos indígenas africanos rendidas à grandeza e bondade dos colonizadores.
O uso destes pequenos veículos de comunicação para reafirmar, aqui e além-fronteiras, uma imagem doce e pacificada do país acompanharia todo o regime. Aliás, a proliferação, ainda hoje, de postais ilustrados com motivos etnográficos e regionalistas, representando os trajes, os usos e os costumes das várias regiões do país, reflecte reminiscências de um investimento reiterado do Serviço Nacional de Informação – órgão de propaganda do Estado Novo – em temas que enaltecessem este cantinho de «gente pobre mas feliz». A aposta parece, no entanto, ter sido muito mais intensa em Viana do Castelo, a avaliar pela produção de uma variedade muito maior de postais com motivos etnográficos daquela cidade em comparação com as outras quatro estudadas. Uma análise do arquivo de Viana do Castelo revelou algo de extraordinário: as autoridades de Lisboa do SNI, de que António Ferro era o principal representante, haviam gizado uma estratégia propagandística que elegia a elegante cidade do Minho como palco da afirmação da identidade nacional. Ali se organizou, ao longo dos anos de ditadura, uma série de celebrações e eventos para os quais foram convidados ilustres visitantes estrangeiros, que ali chegavam integrados em excursões meticulosamente organizadas. Com eles, levavam quase sempre uma colecção de cartões ilustrados, amostras folclóricas do Portugal encenado, de que a célebre mulher minhota – risonha, nutrida e coberta de ouro – era o símbolo máximo.
O visível e o invisível
Outra das temáticas estudadas por Helena Pires e Miguel Bandeira refere-se à paisagem urbana de Braga e ao modo como ela tem sido representada nos postais. Sobre uma planta da cidade, os investigadores tentaram localizar os postais produzidos nos pontos onde foram captados. Verificou-se uma densa sobreposição de imagens sobre zonas muito concretas, tradicionais e históricas, como a Sé de Braga, a Arcada/Avenida Central ou o Bom Jesus. Curiosamente, e apesar da diversidade de retratos representativos de cada local, eles foram quase todos captados a partir do mesmo ângulo, provavelmente a confirmar aquela necessidade de preservar a memória e o imaginário colectivo.
Mas se os postais mostram muito do que é o património urbano, histórico e paisagístico dos lugares, não deixam também de primar por ausências por vezes incompreensíveis. É o caso da Fonte do Ídolo, dos monumentos mais antigos (século I d.C.) e um dos mais exuberantes de Braga que só muito recentemente passou a ter representação postal, ainda que seja reconhecido desde o século XIX como dos mais importantes da Península Ibérica.
Estas conclusões realçam, no entender dos dois autores, a «dimensão reprodutora do postal», um suporte, em seu entender, muito pouco inovador. Ou seja, reproduz-se sempre mais do mesmo. Excepção devida ao postal publicitário, cuja natureza é, ao contrário, apresentar mensagens inovadoras e surpreendentes.
Os autores do estudo destacam ainda outra característica de sempre destes objectos de comunicação, a tendência para o «recalcamento da subjectividade» do autor das fotografias. As imagens são, frequentemente, da autoria de profissionais famosos, mas «não é da natureza do postal evidenciar essa subjectividade». Como vimos, mesmo sem termos consciência disso, o que buscamos no acto de compra de um postal é a memória perene daquele lugar, sem «ruídos» nem outros obstáculos que interfiram no tal imaginário comum.
Correio dos apressados
O que é o bilhete postal? Quem o inventou – e o bilhete postal não tem mais de cincoenta anos de edade – descobriu simultaneamente a correspondência dos que teem pressa e o flirt postal dos delicados. (A. de C., 1917, O Bilhete Postal, Ilustração Portuguesa, II série, p.104. Citação em http://postaisilustrados.blogspot.com).
Esta afirmação bem poderia servir de enquadramento, com ligeiros ajustes, à definição de e-card ou de twitter. Com quase um século de distância, ela reporta-nos à origem destas formas de comunicar ditas pós-modernas, ao mesmo tempo que coloca o postal de cartão e o postal electrónico em planos de grande proximidade no contributo que dão à vida pessoal e à história colectiva. Em tempos e velocidades diferentes, ambos circulam entre remetentes e destinatários a nível planetário, difundindo imagens de lugares, de gentes, produtos, modas. Mas vejamos como tudo começou lá pela segunda metade de Oitocentos.
Em 1 de Outubro de 1869 terá circulado na Áustria o primeiro postal ilustrado, então ainda sem imagem. Mas não há certezas de que assim tenha sido. Os investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS-UM), entrevistados pela nm, preferem fornecer referências mais seguras, evidenciando a multiplicação dos postais ilustrados entre 1880 e 1910, um período de grande desenvolvimento da imprensa e dos livros ilustrados. Citam também o investigador bracarense Nuno Borges de Araújo, que recentemente participou, na UM, num colóquio sobre o tema, durante o qual defendeu a tese de que o bilhete-postal poderá ter tido origem no cartão-de-visita pessoal que à época exibia a fotografia do próprio.
Houve, entretanto, um acontecimento que, em seu entender, determinou a afirmação futura deste meio de comunicação: a tentativa de oficialização do bilhete-postal no Quinto Congresso Postal de Paris, em 1865. No entanto, segundo um artigo de apresentação pública do projecto de investigação do CECS-UM, «só quatro anos mais tarde os postais viriam a ser admitidos pela primeira vez (na Áustria) como formatos legítimos para a circulação de mensagens».
Em Portugal, essa autorização ocorreu 12 anos depois, em Outubro de 1977. Mas somente a partir da década de 1990 se vulgarizaria a comercialização dos postais com o formato definido internacionalmente. «Sendo um meio de comunicação fácil, o postal era um objecto de consumo acessível, num tempo em que a comunicação remota era feita exclusivamente por escrito. Era inclusive mais barato do que enviar um postal dentro de uma carta fechada em envelope», realça o investigador Manuel Bandeira.
A Associação Portuguesa de Cartofilia anuncia na sua página electrónica que o primeiro postal ilustrado de edição particular circulou no ano de 1895. Segundo a associação, foram identificados dois bilhetes-postais ilustrados comemorativos do VII Centenário do Nascimento de Santo António, um dos quais enviado por correio de Lisboa para o Cadaval no dia 23 de Julho de 1895, onde terá chegado um dia depois, um tempo recorde, que só o Correio Azul dos dias de hoje consegue igualar. O autor da missiva era o administrador-gerente da Companhia Nacional Editora, responsável pela edição dos postais.
Uma coisa é certa: o incremento do bilhete-postal ilustrado por todo o mundo esteve directamente associado à «idade das imagens em papel» que caracterizou a segunda metade de Oitocentos e inícios de Novecentos. Os avanços marcantes verificados nas artes gráficas, mais concretamente nas técnicas de impressão de imagens, levaram a que as duas primeiras décadas do século XX se tornassem «um período glorioso para a história dos postais ilustrados». Os temas eram os mais variados e constituíam, de facto, uma janela para o mundo exterior e interior da vida individual e colectiva. Paisagens naturais e urbanas, monumentos, mulheres em poses sensuais ou ostentando a moda de roupas e chapéus, datas festivas, caricaturas e sátiras políticas serviam de suporte e muitas vezes sublinhavam as mensagens do remetente. A adesão entusiástica a este objecto singelo e os impactes que eles exerciam nos seus utilizadores não passaram despercebidos aos regimes ditatoriais, como o Estado Novo, que se serviram dos postais para difundir ideologias e campanhas políticas [ver texto principal].
Também a publicidade encontrou nestes pequenos rectângulos terreno abundante para fazer chegar as suas mensagens aos consumidores. A publicidade ilustrada, assinalam os investigadores, «foi uma das maiores descobertas do final do século XIX», cujos promotores viam neles um suporte barato e eficaz de difusão. E na actualidade, apesar da variedade de instrumentos tecnológicos que nos colocam em permanente contacto com o marketing de produto, o postal publicitário volta a emergir em força e com formas apelativas, mas agora a servir sectores da vida menos mediáticos ou mais marginais. Em formato de cartão ou em versão electrónica (free cards), os postais publicitários respondem bem aos interesses do chamado comércio alternativo, como o comércio justo, por exemplo, em que ao produto está associado um papel não só comercial mas também cultural ou de alcance social.
Contaminação permanente
O aparecimento dos bilhetes-postais constituiu uma revolução também da própria escrita epistolar. O tom formal e quase sempre distante característico das missivas tradicionais – em que as saudações rebuscadas e os desejos de boa saúde ocupavam boa parte do espaço – deu lugar, no postal, a uma escrita breve, de linguagem informal, simplificada e descontraída, prenunciando muito do que, mais de um século depois, viriam a ser os e-cards e os posts em weblogs.
No blogue dedicado ao tema, da responsabilidade da equipa de investigação do CECS-UM, a doutoranda Maria da Luz Correia descreve os resultados de uma pesquisa desenvolvida por um grupo da Universidade de Lancaster e da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido, que comparou os postais ilustrados da primeira década de século XX aos microposts do Twitter da actualidade. Verificou-se grande afinidade entre eles a vários níveis. Por exemplo, lê-se no post da investigadora portuguesa, «se o Twitter permite escrever 140 caracteres, o postal, pelo seu pequeno tamanho, também permitia apenas uma breve fórmula». Por causa disso, prossegue citando os autores do estudo, o postal foi certamente «um dos precursores das abreviaturas e dos “atentados à gramática” que hoje se perpetua não só no Twitter mas também em chats e sms».
A pesquisa mostra ainda que com um século de intervalo, a popularidade dos dois suportes de comunicação e a frequência da sua utilização é também semelhante. Por exemplo, enquanto a rede social e o website dispõem hoje de 55 milhões de visitas por mês, estima-se que em Inglaterra, entre 1901 e 1910, tivessem sido enviados seis mil milhões de postais e realizadas seis entregas de correio por dia nas maiores cidades. Realmente, a diferença entre eles parece residir somente no tempo que medeia entre o remetente e o destinatário…
No futuro, pelo menos próximo, os dois meios parecem destinados a coabitar neste ambiente de massificação e globalização da comunicação. E quem augurava, até com alguma lógica, que os meios electrónicos seriam os sucedâneos que remeteriam as velhas formas de comunicar para a caixinha das memórias, pode começar a reciclar essa ideia. Não passa de uma convicção nada condizente com a realidade. Tal como a fotografia não substituiu a pintura, o cinema não extinguiu o teatro nem a televisão fechou as salas de cinema, também o correio da web viaja de braço dado com os tradicionais postais.
A verificação de que os novos suportes de comunicação não eliminam os antigos, antes contribuem para a sua renovação, abalou as teorias académicas, observa a investigadora do projecto Helena Pires. «Não se verifica uma sucessão em que os novos substituem os velhos, mas uma incorporação permanente de novos suportes», que se contaminam mutuamente. Veja-se como os próprios CTT têm vindo a aproveitar as inovações tecnológicas para incrementar o postal electrónico, assim como as suas colecções de cartões ilustrados, aliás com um sucesso assinalável. O serviço MeuPostal sustenta-se no conceito tradicional dos correios: o cliente cria, selecciona e personaliza um postal e os CTT encarregam-se de lhe dar existência física. Como escreve, a este propósito, outra autora do blogue da equipa da UM, Marlene Pereira, «o produto final é, garantidamente, qualquer coisa como um gesto de amor, uma surpresa, um presente». Assim como um misto de «papel electrónico» que dá corpo aos desejos.

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