09 outubro 2007

Maravilhoso :)

Há vida em Markl


Um ARGUMENTISTA sentado de um lado de uma mesa. Do outro, está o PRODUTOR.

PRODUTOR
Pois é, estivemos a analisar esta sua proposta de argumento e,
vamos cá ver se eu me consigo fazer entender...
Isto que você tem aqui é um excelente trabalho, está a compreender?
Tem aqui coisas muito boas...
ARGUMENTISTA
Mas?...

PRODUTOR
Não, pá. Nem "mas", nem meio "mas".
Isto tem coisas muito boas.
(pausa)
Pronto, talvez seja só um bocadinho...
Como dizer?
Pesado.
Um bocadinho pesado.
ARGUMENTISTA
Pesado?...
Mas, mas, mas...
... a ideia é também um pouco essa, não é?
É a natureza da própria histó...
PRODUTOR
Não, eu sei disso! Eu sei disso.
E repare: eu estou do seu lado, hã?
Agora, temos de ver isto do ponto de vista comercial.
E comercialmente, temos aqui alguns problemas.
ARGUMENTISTA
Mas eu acho que essa história fala ao coração de toda a gente.
PRODUTOR
Não, sim, claro, claro que fala.
Mas, por exemplo, o final.
ARGUMENTISTA
(mantendo um sorriso, embora amarelo)
O que é que... O que é que tem o final?
PRODUTOR
(suspira fundo)
Ele morre.
ARGUMENTISTA
Claro que morre.
Mas... depois volta a viver.
PRODUTOR
Eu preferia... que ele não morresse.
ARGUMENTISTA
Mas...
Mas ó...
PRODUTOR
Sim, eu sei que ele volta a viver, mas sou sincero consigo:
a mim, isso já me parece muita fantasia.
Muita fantasia.
Até porque até aí, a história está bastante realista.
A gente papa aquilo tudo mas, de repente, “olha, então ele morreu”?
E de repente, “olha, agora ressuscitou”?
É um bocadinho...
(faz um gesto de mão como que a querer dizer “forçado”)
Está a perceber?
ARGUMENTISTA
Mas...
Eu...
Repare uma coisa...
PRODUTOR
(passando páginas do argumento)
E eu sei... Eu sei que aqui para trás há estas coisas giríssimas.
Ele a transformar a água em vinho.
Esta maluqueira de andar em cima da água.
Mas isso ainda podia acontecer, repare.
ARGUMENTISTA
Quer dizer, é um pouco como a ressurr...
PRODUTOR
Podia acontecer. Estou-lhe a dizer.
Eu uma vez vi no Casino Estoril um mágico serrar uma sujeita ao meio.
Está a compreender?
ARGUMENTISTA
Pois, mas isso é um ilusionista; aqui neste caso...
PRODUTOR
(abrindo o argumento noutra página)
Isto dele multiplicar os pães, também é possível...
Agora, ele morre, e volta a viver?...
Hummmm.
Um bocadinho forçado. Está a compreender?
(pausa; olha para o ARGUMENTISTA e sorri)
Não fique chateado comigo! Isto é para o seu bem.
Eu já tenho uns anos disto, sei o que funciona, o que não funciona.
Isto... Enfim.
ARGUMENTISTA
(contendo-se, para não se enervar)
Mas vamos lá ver então se a gente se entende. Portanto...
PRODUTOR
Faz lembrar a “Missão Impossível 3”.
Viu a "Missão Impossível 3"?

ARGUMENTISTA
N... Não. Mas...

PRODUTOR
Toda a gente fica danada quando o Tom Cruise morre.
De repente a rapariga dá-lhe um choque - “ah, está vivo outra vez”.
Está a compreender? Só porque é o herói. T-A-N-G-A. Tanga.
Nós podemos achar que o espectador é parvo, mas ele não é estúpido.
ARGUMENTISTA
Pois, mas neste caso...
PRODUTOR
Eu cá não matava o tipo no fim.
ARGUMENTISTA
Não?
PRODUTOR
Não.
(silêncio desconfortável durante alguns segundos)
Quantos é que eram os amigos dele?
ARGUMENTISTA
Os amigos dele?... 12...

PRODUTOR
Contando com o mau?

ARGUMENTISTA
O mau?

PRODUTOR
O gajo que o trai.

ARGUMENTISTA
Ah. Sim, 12.
PRODUTOR
12. 12, 12, 12, 12...
(reflecte um pouco, em silêncio...
...e, de repente, os olhos brilham como os de uma criança)

12!
“Doze Indomáveis Patifes”. Lembra-se?
Isto é quase uma citação. Pode ser quase uma homenagem.
Eles juntam-se, está a compreender?
ARGUMENTISTA
Mas...

PRODUTOR
E aí aparece o gajo que o traiu e tudo. Para o salvar.
12 ainda é muita malta.
Se cada um deles for especialista num tipo de armamento...
ARGUMENTISTA
(num fio de voz)
Armamento?...
PRODUTOR
Sim, um é o das armas de fogo.
O outro é o das bombas.
O outro, suponhamos, é o das armas brancas. OK?
Um deles, sei lá, pode ter tido treino ninja.
ARGUMENTISTA
Treino ninja... Não sei...
E a questão das armas de fogo e das bombas, repare numa coisa...
PRODUTOR
Se cada um deles for especialista numa arma, eles podiam juntar-se,
no fim, para salvar o tipo.
ARGUMENTISTA
(aterrorizado, mas tentando manter a compostura)
Então, mas assim...
PRODUTOR
É que os outros estão muito apagados.
Eles quase que ficam resignados, “olha, morreu, deixa-o morrer”.
O que é isto? Está a compreender?
E assim trazíamos o mau de volta. O Jonas.

ARGUMENTISTA
Judas.

PRODUTOR
Gosto mais de Jonas. Jonas, o vilão. Jonas.
(testando diferentes entoações de "trailer")
Jonas. Jooonas. Joh-nas. Jaonas.
Mas era a redenção dele. Vinha ajudar os outros.
Era, sei lá, o da catana.
Eles até podem julgar, "eia, este!".
Mas, de repente, "ah, OK, ele veio ajudar.
O Jonas reflectiu sobre os seus actos. O Jonas é um de nós."
OK?
ARGUMENTISTA
Mas ouça uma coisa...
PRODUTOR
(suspirando fundo, enquanto olha, uma vez mais, para o argumento)
É que há aqui um clímax do caraças que você não aproveita.
ARGUMENTISTA
(cabisbaixo)
Pronto.
PRODUTOR
De resto, tudo bem.
(fecha o argumento e olha para o ARGUMENTISTA)
Bom. Timings. Quando é que posso ver a versão final?

O ARGUMENTISTA não consegue articular uma única palavra.

PRODUTOR
Segunda-feira?

ARGUMENTISTA
Segunda-feira. Mas eu ainda não sei bem o que...

O ARGUMENTISTA não consegue dizer mais nada. Está cabisbaixo, e há uma pausa, em silêncio. O silêncio é quebrado pelo PRODUTOR.

PRODUTOR
(sorrindo)
Pronto, está magoado comigo. A velha história, artista contra produtor.
Lino. Lino, olhe para mim. Está a ouvir? Olhe para mim.

O ARGUMENTISTA levanta a cabeça e tenta um sorriso de cortesia.

PRODUTOR
Eu não quero que você me veja como "o produtor", OK?
Quero que olhe para mim como um colega. Um artista.
Eu sou um artista. Pronto, OK, uso este fato para vir trabalhar.
Você não. Mas o que é um fato? Eu, ao fim-de-semana, sabe o que visto?

ARGUMENTISTA
Não, senhor...

PRODUTOR
Fato-de-treino.
(faz um estalido de "TOMA!" com a boca e recosta-se na cadeira)
E esta agora, hã? Agora ficou surpreendido. A vida é isto.
Nem tudo é preto e branco. Há dimensões. OK?
Vá, vá lá trabalhar.

O ARGUMENISTA levanta-se, lentamente, e prepara-se para sair do escritório, quando se lembra de perguntar uma última coisa.
ARGUMENTISTA
Estava aqui só curioso...
Falou-me do problema de ele morrer e viver outra vez...
E a maneira como ele é feito? Ou seja, a mãe dele...

PRODUTOR
Adorei. Adorei.
A mulher diz que foi um espírito e o marido acredita.
É divertido.
É alta comédia.
Toda a gente vai rir.
Acredite.

ARGUMENTISTA
Sim senhor.

O ARGUMENTISTA vira costas e sai.

PRODUTOR
(em voz alta, tentando apanhar ainda o ARGUMENTISTA no corredor)
Talvez não seja mau mostrá-la com o amante!

O ARGUMENTISTA mete a cabeça dentro do escritório do PRODUTOR uma última vez.

ARGUMENTISTA
Diga, diga...

PRODUTOR
Talvez não seja mau mostrá-la com o amante.

ARGUMENTISTA
Com o amante?

PRODUTOR
Sim. Uma cenazinha curta, nem é preciso mostrar porcarias.
Até porque eu quero que isto seja visto por famílias.
Uma cenazinha com o amante. Ela a sair da cama dele no dia seguinte.
Uma ou duas falinhas cómicas. "Foi tão bom", "Pois foi".
Só para as pessoas perceberem que ela anda mesmo com outro.

ARGUMENTISTA
Mas ela não...
(detém-se e encolhe os ombros)
Quer dizer: está bem.

O ARGUMENTISTA vai-se embora de vez. O PRODUTOR fica sozinho no escritório. Olha uma última vez para o argumento à sua frente.

PRODUTOR
Este puto tem ideias.

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