26 outubro 2004

«Farenaite 7/17


Acerca do realizador americano Michael Moore, há várias opiniões muitas vezes contraditórias. Há os que acham que é um realizador de talento justamente reconhecido pela Academia de Hollywood (que, de vez em quando, lá vai acertando) e os que vêem nele um activista político “liberal” (o que se chama nos Estados Unidos às pessoas a que cá chamamos “de esquerda”) que sacrifica a arte aos seus ideais e não olha a meios para transmitir a sua visão pessoal dos acontecimentos que retrata sem preocupações com objectividade e isenção. Há também os que misturam elementos das duas correntes de opinião.


Pessoalmente, não me preocupa saber quem tem razão. Vi o último filme de Michael Moore recentemente e não me surpreendeu a forma feroz como George W. Bush é atacado e que não pode justificar os arremedos inquisitoriais dos que, por lá, na terra da liberdade e da democracia por excelência, quiseram censurar o filme. São assuntos deles e eu não tenho nada que me meter. É verdade que me faz confusão saber que Bush não venceu (como foi anunciado) as eleições no estado que desempataria os dois candidatos, mesmo sendo o estado em questão governado pelo irmão do actual presidente e em que vários cidadãos não-republicanos viram os seus nomes retirados dos cadernos eleitorais sem justificação plausível, e sendo os votos contados por uma apoiante de um dos candidatos (e não era de Al Gore.) Também me custa perceber, mesmo aceitando a vitória fictícia de Bush na Florida, como é que num país que apregoa as virtudes da democracia pelo mundo fora, indo ao extremo de a tentar impor pela força das armas, o presidente pode não ser o candidato com o maior número de votos, como sucedeu, e tudo porque a eleição do presidente dos Estados Unidos é feita não de forma directa mas por um colégio de representantes dos vários estados para salvaguardar os direitos dos territórios menos povoados, uma preocupação que talvez fizesse sentido no séc. XVIII mas que agora parece algo absurda. Mas é lá com eles. Se gostam do sistema, óptimo. Se não gostam, resolvam o problema sozinhos que ninguém tem nada com isso.


O motivo que me leva a falar em Michael Moore não é a vontade de me dedicar à crítica cinematográfica. Há gente com competência real para o fazer. Nenhum dos críticos profissionais que temos faz parte desse grupo mas isso é outra cantiga.
Não pude deixar de me aperceber de algumas semelhanças entre a situação que se vive nos Estados Unidos e a que a brava gente lusitana enfrenta. Eles são governados por alguém que não foi eleito. Nós também. Quem os governa parece não ter competência para o cargo. Quem nos governa a nós também não. O elenco governativo americano está repleto de personalidades com ligações difíceis de camuflar a interesses económicos diversos. O português também. E isto sem querer duvidar da honestidade dos nossos ministros que são com certeza gente de bem e que só quer trabalhar para fazer de Portugal um país melhor e que não hesita em assumir posições antagónicas aos interesses dos amigos, familiares e colegas de trabalho ao lado dos quais estavam até ao dia da sua tomada de posse, funcionando a cerimónia de tomada de posse como uma espécie de ritual místico de purificação em que o gestor mais ambicioso se transfigura no mais isento dos servidores da causa pública.


O presidente americano tem amizades embaraçosas (elementos da família Bin Laden, membros da família real saudita, empresários corruptos). O primeiro-ministro português tem Cinha Jardim e Margarida Prieto. O americano tem Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Berkowitz, Colin Powell, Condoleeza Rice. O português tem Morais Sarmento, António Mexia, Álvaro Barreto, Fernando Negrão e Teresa Caeiro. O antigo governador do Texas tem ar de bruto, boémio, irresponsável. Como é óbvio, as diferenças entre os dois não se podem fazer sentir em todos os aspectos.


E depois há o patriotismo. Sempre que há no mundo governantes ineptos que não têm qualquer pudor em tornar os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, que submetem os interesses do povo a suspeitos interesses de Estado, surge sempre uma necessidade imperiosa de apelar ao patriotismo porque “as pessoas têm de aprender a gostar do seu país” e a “verem o seu país de uma forma positiva” e, enquanto penduram bandeiras e cantam o hino, não vêem o caos da economia, o desemprego a aumentar e os erros de governação que se sucedem como traques num jantar de convívio entre Fernando Mendes e Fernando Rocha.


Nada me move contra o patriotismo. Se se entender o patriotismo como uma espécie de bairrismo saudável consciente daquilo em que somos bons e daquilo que pode ser melhorado e ansioso por aprender com os de fora coisas que nos possam ajudar a resolver o que está mal. O outro patriotismo que se aproxima mais do bairrismo saloio à moda de Manuel Serrão é desprezível. Também não gosto desta coisa das bandeiras penduradas na janela. Chamem-me esquisito mas não gosto. Está bem que até é uma coisa inofensiva e dá colorido mas sempre que vejo uma bandeira pendurada (e elas ainda aí andam, sobrevivendo à tragédia grega do Euro), faz-me sempre pensar que estou na Alemanha dos anos 30. A diferença é que as suásticas do Terceiro Reich que havia de durar mil anos e durou um bocadinho menos (e ainda bem) eram mais ou menos todas iguais e não havia variações de estilo como sucede com a bandeira da República de 1910 que os portugueses prendem com molas ao arame da roupa sem se importar se as quinas estão de pernas para o ar ou se os castelos são torres e garatujos indecifráveis.


Quando o patriotismo resulta de apelos de quem está no poder, é sempre mau sinal e é o pior tipo de patriotismo possível. Basta olhar para a história recente da humanidade para o perceber. Foi mau sinal na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, no Japão expansionista, no Iraque de Saddam, no Portugal do Estado Novo, na Sérvia de Milosevic. Continua a ser mau sinal no Israel dos colonatos (que consegue ofuscar um país democrático, liberal e laico de gente esclarecida erroneamente identificada com um punhado de fanáticos barbudos enfiados em condomínios de luxo no deserto protegidos por metralhadoras e mísseis balísticos), nos Estados Unidos de Bush e no Portugal do triunvirato Durão Barroso-Santana Lopes-José Eduardo Moniz.
No filme de Michael Moore, há um momento em que se refere que são sempre os mais pobres os primeiros a embarcar em euforias patrióticas irracionais. Outra coincidência. Por cá, passa-se exactamente o mesmo. Com a descoberta recente de um orgulho pátrio fajuto sustentado pelos media e por políticos com segundas intenções, são também os mais desgraçados de um país em que os desgraçados são a maioria os mais orgulhosos de ser portugueses, os que mais saltam, os que mais gritam “Portugal Alê Alê,” os que primeiro alinham no conveniente discurso oficial do “chega de estarmos sempre a queixar-nos do que está mal, vamos antes centrar a nossa atenção no que está bem e esquecer o resto".»

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