28 março 2023

Traduzir Poesia, de Valter Hugo Mãe


 

Adoraria traduzir uns poemas de poetas que tanto admiro e não consigo. Fico às voltas com a elasticidade dos conceitos, de como uma coisa pode ser ligeiramente outra coisa, e não posso decidir. Tenho sempre a convicção de que destruo o poema original, forçando-o a ser o que quero e não aquilo que é.

Que levianos, prepotentes ou mentirosos podem ser, então, os tradutores? Será necessária uma pouca-vergonha qualquer para que avancem sem remorso por sobre o texto alheio? Agradeço a cada um a versão na minha Língua, única onde propendo para algum conforto, que nunca é minimamente completo nem estável. Mas cobiço a bravura de não se inibirem. Cobiço a capacidade de decisão, sabendo que uns instantes depois de fechar o seu trabalho regressam as dúvidas, a descoberta de outros termos, outra formulação que talvez dissesse com maior fidelidade o que o poeta quis dizer.

Ando há anos com alguns livros na mira. Anoto tantas versões possíveis que meus papéis mais parecem obras plásticas. Lembram as maravilhas da Ana Hatherly, atabalhoados de uma Língua ilegível que se escreve por mistério e presciência. Uma mágica. Contudo, não funcionam. Não milagram coisa nenhuma porque não brotam nem Aladino nem Virgem Maria. Não aparece nada senão mais dúvidas e a coisa infinita de seguir tentando.

Por estes dias, deitando os papéis à mesa como cartas de verdadeira adivinhação, esperei que uma crueza qualquer me acometesse e elucidasse acerca daquilo. Julgo que a vida tem destes instantes. Momentos nos quais nos sentimos inteiros e lúcidos e tudo quanto havia para dirimir vai despachado sem mais pasmo nem espanto, sem mais cerimónia nem melindre. E ali estive. Os olhos sorrindo de quem se preparara para a normalidade de escolher um juízo sem culpa. Julgar. Julgaria sobre o que seria um poema deste e daquele poeta em português e ficaria sem remorso, impune, feliz.

Não foi possível. Para cada poema defini um mínimo de quatro versões. Alguns vão acima das dez versões. Ainda assim, soando-me tão brilhantes no original passam a débeis bichos em português. Como poderia eu decidir de entre animais magoados quando o poema original me soa a uma fera caçadora, potente, sem mácula? Poderei eu estar equivocado e o original incidir com fascínio sobre mim porque me fascina, na verdade, a outra Língua? Ou serei tão falho tradutor que não encontro no português modo de verter com competência a magnitude dos versos estrangeiros?

Sinto-me como o meu irmão quando éramos miúdos e sabia que não ia ganhar o jogo. Dava um coice no tabuleiro, atirava tudo ao chão e não era mais possível prosseguir o jogo nem provar a situação de vantagem de uns e desvantagem de outros. Sinto-me com a mesma vontade de alagar o tabuleiro e tirar de frente a prova de que os meus queridos poemas dos meus queridos poetas estrangeiros estão encurralados para lá de uma fronteira que, por mais que eu me esforce, não podem atravessar.

 Notícias Magazine

06 março 2023

Poema aos homens constipados


Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
 
António Lobo Antunes, (Sátira aos HOMENS quando estão com gripe)