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O racismo n'Os Maias, por Eugénio Lisboa
Publicado em De Rerum Natura
Uma estudiosa cabo-verdiana,
doutoranda numa universidade norte-americana, Vanusa Vera Cruz, julgou,
aliás em termos louvavelmente moderados, descobrir no romance Os Maias traços de racismo numa fala de João da Ega, dirigida ao funcionário superior da Instrução pública, Sousa Neto.
Para
começar, é de um primarismo clamorosamente lamentável, ainda mais numa
doutoranda, confundir as opiniões de Eça com as opiniões dos personagens
que congeminou para a sua soberba comédia humana. Imagine-se
confundirmos Shakespeare com Macbeth, Victor Hugo com Javert ou Eça com o
Conselheiro Acácio!
Confundir
as opiniões dos personagens com as do seu criador é sempre um erro de
palmatória e faz lembrar aquele espectador que não conseguia dissociar o
actor do personagem que, no palco, encarnava e, no final da peça,
indignado com o comportamento do “vilão”, subiu ao palco e deu um
arraial de pancada ao actor que o representava…
Aliás,
uma leitura que nem precisa de ser muito cuidada do grande romance de
Eça permite rapidamente perceber que João da Ega nem sequer está a dizer
a sério o que pensa da escravatura: está simplesmente a “gozar”
sadicamente o funcionário superior da Instrução Pública, que é ignorante
e estúpido como uma porta. É o mesmo, Sousa Neto, que, noutro ponto do
romance, pergunta, seriamente, a Carlos da Maia se, na Inglaterra, havia
literatura. Carlos da Maia dá-lhe a resposta que ele estava mesmo a
pedir, dizendo-lhe, com desplante gozão, que não, que na Inglaterra não
havia literatura… Sousa Neto, sempre solene, sempre obtuso, aplaude
aquele povo prático aquele povo essencialmente prático!
Se
alguma coisa Eça faz, nesta admirável passagem do seu romance, é pôr a
ridículo o personagem de Sousa Neto, ao mesmo tempo que, enviesadamente,
faz a demolição da escravatura e dos que ainda a defendem, naquela
altura. Usando, para este seu combate, a mais poderosa e mortífera das
armas: a sátira, em que foi mestre. Eça (e Ega também) goza, de uma
ponta à outra, com a estupidez de Sousa Neto, tanto mais obscena quanto o
é de um funcionário superior da Instrução Pública.
Eis por que não vejo qualquer necessidade de se conspurcar qualquer edição de Os Maias,
com notas explicativas de pé de página, sobre o racismo prevalecente
naquela época, para desculpar um grande romancista que não precisa de
desculpa nenhuma: Eça, nisto, como em muitas outras coisas, estava
destemidamente à frente de preconceitos e valores negativos próprios da
época em que vivia. Do que Os Maias precisam não é de caganitas
de pé de página a explicarem o por demais evidente, do que precisam
mesmo é de que o leiam com a atenção que merece o mais notável romance
da literatura portuguesa.
O
problema é que os adeptos da “political correctness” são quase sempre
despidos de sentido de humor, de sentido de ridículo e, sobretudo,
providos de uma imensa falta de respeito pelas grandes obras de arte.
Por isso enveredam facilmente por aquilo que Orwell cunhou, para sempre,
como “polícia do pensamento”, muito usada por todas as ditaduras de
direita e de esquerda.
Já
agora, deixo aqui, para meditação e proveito, esta pergunta feita por
um dos maiores críticos de arte do século XX, Robert Hughes, autor do
notabilíssimo The Shock of the New e do muitíssimo incómodo A Culture of Complaint.
A pergunta é, singelamente, esta: “O que é que se prefere? Uma arte que
luta por mudar o contrato social e falha? Ou uma que procura seduzir e
divertir e consegue?”
Eugénio Lisboa
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